CARTAS PROFUNDAS
Certa feita, amigo, você me disse:
- “A você falta apenas crer em Deus. Já pensou ser tudo o que você é e ainda saber que há um ser superior que olha por você?”
Amigo, mesmo com toda a sua bondade e preocupação que mostrou com o que disse, não sou alguém assim tão simplório.
Não sou como você que aderiu a uma fé contraditória que você mesmo criou ao seu bel prazer.
Amigo, não sou idiota. E se sei fazer alguma coisa nesta vida, essa coisa é ler. Ler e entender.
O seu cristianismo é algo muito pós-moderno para mim. Até para mim que sou ateu, o seu cristianismo é algo muito inusitado. Pois ele admite que você pratique tudo o que bem quer, e você, abençoadamente, não sente culpa nenhuma pelas coisas que pratica.
Aliás, sua imunidade à culpa, seu sucesso em todas as áreas da vida, e sua hipocrisia imensa, que sei que é inconsciente, com relação à religião, só me fazem ter mais admiração por ti.
Quiçá eu fosse superficial a ponto de não perceber as contradições de sua crença e adotá-la para mim com essa candidez que você, amigo, nem de longe percebe.
Você, amigo, que apesar de ser uma “cobra” na vida, no bom sentido, é claro, para assuntos eclesiásticos não é alguém a quem se possa dar um mínimo de crédito.
Portanto, vivamos nossa amizade. Deixe-me com meu ateísmo.
Sei que você jamais experimentará o que experimentei, jamais caminhará por onde caminhei.
Mesmo com toda a profundidade de nossa amizade, sei que há lugares que são inatingíveis tanto em mim quanto em ti. Lugares estes que nem mesmo nós sabemos.
Amigo, eu com meu ateísmo sou muito mais cristão do que você. Um cristão de rito e de fachada, alguém que observa a forma e nunca o conteúdo.
Mas mesmo assim, você é meu amigo. Não porque eu ou você escolhemos, mas porque a vida assim nos colocou frente a frente.
Vivamos isso por enquanto.
Talvez um dia você possua maturidade suficiente para falar sobre essas coisas comigo.
Vamos viver a vida, o corpo, o vinho e a alegria, pois o resto é quimera.