Quero Romper
Quero romper. Tenho uma carreira pela frente, entende? Não posso abrir mão disso, cara! Nunca fui bom com nada nessa vida. Não sei ser vendedor, não sei trocar a homocinética, não sei trocar um fusível de chuveiro, não sei dirigir. Tentei dar aulas de muay thai mas a minha didática era horrível demais e eu não tinha paciência pra ficar pegando no quadril de macho suado pra mostrar como é o movimento a ser feito durante um chute. A única coisa que eu sei fazer é essa: escrever. E você ao meu lado me trazendo felicidade está impedindo isso. Felicidade é algo bacana de se sentir; claro que é. Mas sou dependente da melancolia pra exercer esse meu pseudo-ofício. Não, tudo o que escrevi sobre você foi sincero, você é realmente uma musa inspiradora, mas... Sim, sei que preciso aprender mais, sempre mais, estudar teorias e técnicas e essas coisas aí e não simplesmente sair chutando tudo o que vem pela frente. Mas isso é tudo o que eu tenho hoje e não posso perder. E se você se for, amanhã? É tão mais nova que eu, tão mais cheia de vida e objetivos e projetos que eu não estranharia se você me abandonasse por alguém mais novo e ambicioso; alguém que não necessitará ficar sozinho por longos periodos pra tentar fazer algo que dificilmente lhe dará um teto pra morar.
Você não sabe o quanto me dói fazer isso. Sei que é uma perda e tanto - a maior das perdas. Nunca que eu encontrarei alguém pra ficar me olhando por horas a fio sem dizer uma palavra. Nunca que eu vou encontrar alguém que olha as estrelas da forma como você olha. Fico até confuso em dizer se são elas que brilham por serem admiradas por você ou se são seus olhos que brilham ao contemplá-las. Séculos de névoa européia fizeram a sua pele desta forma; tão branca e leitosa, macia, com essas maçãs que ficam ruborizadas com o menor indício de calor. É um sacrifício e tanto abrir mão das lambidas que você dava bem dentro do meu ouvido e dos pedidos extravagantes que você fazia quando estávamos no auge da volúpia. Onde, por Deus, vou encontrar alguém com essa disposição? Quem - assim que eu abrir os olhos - vou contemplar recostada no espaldar da cama lendo o meu livro? Que mulher ficará com os bicos dos seios retesados só de levar uma roçada de barba rala no pescoço? Não, nunca encontrarei alguém pra ficar comigo na véspera de Natal bebericando um Malbec à luz de velas enquanto as outras pessoas se matam em homenagem ao nascimento de Cristo. Quais mandalas verdes os faróis dos carros que circulam durante a madrugada iluminarão, que não os olhos teus, tão belos, doces, brandos, calmos? A quem vou destinar o meu feriado prolongado? Meu próximo 31 de Dezembro?
Criamos uma convivência que se tornou impossível passar muito tempo longe um do outro. Criamos uma dependência um do outro. Se não nos encontrássemos, ficávamos como um viciado esperando o momento de abarcar a ansiedade que o corrói, consumindo aquilo que o viciou. Encontrar você após um tempo afastado sempre me lavou a alma, me fez esquecer tudo o que me causava angústia. Devo muito a você e me sinto um grande filho da puta estragando o que construímos só pra ter algo que eu não sei se tenho competência ou colhões para arcar com.
Eu imagino você lendo isso querendo, simplesmente, cumprir com as suas promessas de me matar. Mas não de prazer, não de doçura, de amor; não do bálsamo característico que você sempre me propiciou desde o dia que nos conhecemos até ontem, quando você foi embora daqui levando o meu livro favorito emprestado (aliás, você pode devolvê-lo assim que terminar de ler esta carta); não, falo das suas promessas de jogar água fervente enquanto durmo caso descobrisse alguma traição, da facada na jugular caso eu te magoasse, do tiro na cara caso eu olhasse para a bunda de alguma amiga sua. Talvez eu seja merecedor de tudo isso, mesmo...
Não decidi isso de última hora. Há alguns dias eu venho tentando localizar o que me incomoda e de súbito estalo constatei o que é.
Sabe aquele deck de madeira na beira do lago, onde tantas e tantas vezes ficamos deitados contando piadas preconceituosas? Então, estou nele, agora, escrevendo isso. Beirando as lágrimas. Tem um casal aqui do meu lado. Ela está sentada de lado, no colo dele, com um braço em volta do pescoço e com a outra mão segurando o queixo. Ela segura, fala alguma coisa e dá um beijinho de leve. Sabe do que eu me lembrei? Da sua mãe impaciente querendo ir embora e acelerando a nossa despedida e falando "ei, dois pombinhos, quero assistir a novela, cacete!". Esse casal aqui me lembra pombos namoricando na beira de um telhado úmido pela manhã. Tento escrever de ponta cabeça, mas a caneta não funciona e isso me lembra um texto de um amigo meu. Paro de escrever e fico olhando as nuvens, o céu azul, um céu azul lindo onde grupos de pássaros passam rumando para alguma árvore aconchegante para descansar ou alimentar seus filhotes. Pessoas passam correndo e pedalando em suas bicicletas caras.
Não sei o que fazer. Não sei do que abro mão. Não quero te carregar no meu derrotismo. Não quero que você se prenda a alguém que vai terminar descarregando caminhão de material reciclável cumprindo jornadas de 16 horas de trabalho. Não quero que você me sustente. Eu até tinha esse sonho, antigamente, de encontrar uma mulher rica que me bancasse e me desse amor enquanto minhas atividades seriam simplesmente beber do dinheiro dela, fodê-la e escrever.
Mas, pensando bem... Você se importa de trocar as lâmpadas? Trocar a homocinética? O fusível do chuveiro? E se eu passasse a escrever coisinhas felizes? Ora, devo ser versátil, não é?
Como eu consigo ser mais velho que você e, no entanto, excepcional e infinitamente mais imaturo?
Esquece tudo o que eu falei aqui, vai! Não, nem tudo, você é tudo aquilo eu que falei, meu amor, e mais, mais do que eu posso exprimir, mais do que eu poderei exprimir em algum longínquo dia do porvir.
Esquece tudo isso e vamos continuar? Preciso te consumir, minha droga, meu anjo, meu demônio, minha camponesa da maior Metrópole do mundo!
I love you, meine hölle!
Windsor for the Derby - Melody of a Fallen Tree
Hot Water Music - Bleeder
Dinosaur Jr. - Crumble