Carta ao presidente em exílio
Andam desejosas as velhas pernas pelas avenidas maltratadas, e os vendedores de carne se acumulam nas estreitas vielas escuras. Continua aquele cheiro trépido nos bueiros que tingem a cidade com seu cinza-sem-vida. Não se preocupe presidente, o país continua indo muito bem, desde sua saída para Budapeste as crianças não choraram uma só vez. Elas estavam vendadas e amordaçadas por mais tempo do que o necessário e algumas até morreriam de fome, mas os velhos cães continuam latindo ferozmente para quem ousar levantar o tom de voz por aqui.
Ainda circulam pelos prostíbulos os homens engravatados e sentinelas embrutecidos, desconsternados através da noite. Chove talvez com a mesma regularidade do que no seu tempo, porém os esgotos estão ficando cada vez mais entupidos de dejetos, membros posteriores, camisas de vênus, carrinhos de bebês, churume, são essas as desvantagens de atirar a merda no ventilador. Mas não se preocupe presidente, aqui ainda se escutam tiros durante a madrugada e as risadas pelos bares são sádicas o bastante para fazer Hitler chorar. Teve um velho ontem que me deu todas suas economias em troca de um abrigo e queria que eu o escondesse da inquisição das ruas, não, não devo ser um traidor não é mesmo? Ele foi preso, junto de sua barba e seus trapos sujos.
Há um sorriso íntegro no rosto dos corruptos que eu não consigo entender, presidente. Há um suspiro no coração dos apenados, uma esperança no olhar dos pobres, um salto na conversa dos traidores. Há tantas coisas que eu não consigo entender...