Breve Corporificação do Ideal

Não estranhe essa minha fixidez vítrea ao te contemplar, Berenice. Não se preocupe com a hipnose que você causa em mim, como se eu fosse o Sr. Waldemar, Berenice. Não vou deixar que você perca sua vivacidade com a peste que assola o mundo; não vou deixar você esmorecer, emagrecer e adquirir a aparência de um fantasma. Não vou deixar você morrer, Berenice. E não dê importância para o meu olhar bovino, um farolete de avião brilhando, enquanto olhos seus dentes. Berenice, você não sabe o quanto me foi difícil estar aqui, com você. Perdi três ônibus e já está muito tarde e eu moro muito longe. Deixei que eles passassem, Berenice. Eu não poderia perder a oportunidade. Dificilmente a encontraria assim, novamente. Já reparou nas baratas? Você a vê uma vez para nunca mais. Aqui nesse pseudosubúrbio é a mesma coisa. Berenice, não faça esse trejeito. A dificuldade não é/foi não poder mais voltar pro conforto do meu lar, já que estou aqui, aquecido e protegido pela energia que você emana. Tenho um bloqueio. Não consigo falar, por mais verbalmente fluente que eu seja, com quem me inspira interesse. Você surgiu, olhou pra mim e meu coração saltou pela boca. Poderia ser um engano - como na maioria das vezes o é. Mas você olhou de novo e de novo e de novo. Berenice, como consegue Materializar o Ideal de forma tão completa? Deve haver algo de errado - Ah, olha aí o meu defeito: procurar defeito. Qual é o teu defeito, Berenice, além de fazer com que eu vença meus medos e a puxe pelo braço possuído por uma coragem que surpreenderia qualquer um do meu círculo de amizades? Já comecei mal, eu sei. Pra quem não conseguia abrir a boca, eu não paro de falar um minuto. Seu sorriso me estimula a continuar falando; algo me diz que eu devo continuar falando. Não posso perder a oportunidade que com certeza é única. Vamos pegar uma mesa? Ah, sim, vou ficar. Como vou falar que não? Ah, Cristo, como alguém pode pronunciar a palavra 'não' quando você pede desta forma? Eu também gostei de você. Estranho você falou que gostou de mim. Não me encaixo muito bem nos padrões, sabe como é, me sinto como o Mogli no meio desses prédios. Fala um pouco, estou ficando com a boca seca e meio encanado. O que você faz da vida, hum? Já estou melhor, já estou melhor. Reparou que estamos de mãos dadas e esse lugar cheio está vazio? Tem uma música que estava na minha cabeça que começa assim: "- foi-se o tempo que ter o que dizer serviu para alguma coisa". Ah, quero parar tagarelar, tenho sede e receio de ficar com aquela saliva ressecada e embranquiçada no canto da boca. Mentira que você faz isso? Mentira que gosta dessa banda? Mentira que você aos doming... Não, espera, pára, estou sonhando. É, eu sei, falar assim é meio dramático, mas é que o drama veio pro real, gente, preciso de um refrigerante. A mesma música que comentei termina assim: "- é só um dia, então, como outro dia qualquer em que você não é ninguém. Especial pra ninguém". Com os diabos, Berenice, é afinidade demais! Vamos lá, comece a me irritar. Vai. Você deve escrever errado, ter o maior chulé da cidade, dar estilingadas em passarinhos, pedradas em cachorro e jogar lixo na rua. Ah, eu sei que não. Ok, vou parar de procurar defeito. Sim, compreendo que você tem todos e é doida de pedra. Todos somos - ainda bem. Esse papo de religião é complexo, sou um gentio burro demais com argumentos rasos demais, deixa isso pra lá. Cansei desse lugar. O que foi? Seu olhar é engraçado subindo e descendo. Qual é, minha boca está suja? Cuidado com os aparelhos ortodônticos (?). Brincadeira. É, a rua está apinhada. Calor, né? São Pedro deu uma trégua. Deve achar que eu estou em casa com insônia. Dessa vez ele se deu mal, pois estou aqui, desviando desse monte de gente embriagada e nossos dedos se encontraram de forma instintiva. Berenice, como você pode confiar suas delicadas mãos a um estranho? E se eu for integrante de uma quadrilha de venda internacional de orgãos? Não, não sou. Aposentei disso ai, não estava dando futuro. As pessoas se reprimem demais, fumam demais. Seus órgãos estavam dando defeito, se esvaiando com o dobro da velocidade. O bom é que não tem reclamação de cliente quando eles param de funcionar, mas não achei justo. Não, não estou falando sério e pára de ficar andando olhando pra mim desse jeito que eu sou capaz de fazer uma loucura. Qual? Esta: de te abraçar no meio da calçada ignorando toda essa cacofonia de vozes e buzinas e músicas mesmo sem saber o por quê te abraço. Será que devemos, Berenice, unir os lábios? Será? Isso pode estragar o que vivemos até agora... Mas, era isso o que estávamos querendo desde o começo, não é? Fomos atraídos de mutuamente pelo nosso exterior e depois fomos amalgamando-o com o nosso interior. Um beijo mal dado é capaz de por tudo isso a perder, Berenice e não é exatamente isso o que quero. O que eu quero? Ah, tarde demais, lábio com lábio, língua com língua, o desenho do nosso corpo formando uma só sombra na sarjeta e a surrealidade que tudo isso implica arrebatando a minha cabeça com pensamentos ciclônicos (?) e demasiadamente complexos e aleatórios para que eu sinta os pés no chão; apenas me deixo levar até o lugar que você quer me levar, Berenice, pois de toda a vastidão do tempo e imensidão de espaço isso nos foi concedido e eu só quero estar aqui porquanto nos for permitido estar; o depois, é depois. Hoje não está sendo um dia comum, Berenice. Fui especial para alguém. Vou voltar pra casa quando o sol já estiver bem no alto mandando seus raios sem se importar com quem não merece recebê-lo e com a sensação de que fui especial pra alguém. A sensação, por que a certeza eu deixo para mim: você foi especial pra mim e isso me basta desde já. Ah, me dá o seu contato? Essa foi uma das primeiras coisas que eu te falei, não é? E é uma das últimas - por ora, espero. Ah, seu cabelo é tão encantador! Vou embora. Não, não vou fazer nada mais tarde? O quê? Mesmo? Claro que eu quero e...

Acorda no ônibus. Acorda e olha as nuvens fragmentadas no céu, brancas brancas ou levemente alaranjadas. Ainda não sabe se estava sonhando ou se tudo realmente aconteceu. Recostou a cabeça no banco e no vidro e ficou vendo a paisagem urbana se alterando. Dormiu novamente.

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 12/12/2010
Código do texto: T2667605
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