Candy On a Rainy Day

A expressão facial do porteiro não me engana, por mais que você tenha tentado provar o contrário: esta foi a primeira e última vez que eu pisei aqui, eu sei. É natural que tais palavras saiam assim da sua boca e me façam bem, você é altruísta por natureza e nunca que proferiria palavras que pudessem me ferir de alguma forma. O porteiro sabe das coisas. Vê cara nova entrando e na hora da saída as caras novas têm todas a mesma expressão - ou seus célebres moradores é quem se despedem do hóspede com a mesma cara. Já vi outros porteiros e já conversei com porteiros vendo tais expressões. Seria normal, isso, se não tivesse sido tão bom pra mim. Queria poder ficar mais um dia ou então voltar mais tarde com outra roupa, com uma escova de dentes e uma muda de roupas e com os gatos e com uma mala de rodinhas e com as folhas dos textos que imprimi de forma ilegal lá no trabalho e com os meus cds e meu computador e meus tênis e cabides e camisetas e tudo tudo tudo tudo. Agora chove e tenho que correr pra pegar o metrô e não ficar na rua enquanto você está protegida pelo porteiro, com sua calça do pijama, inalando o meu cheiro no seu travesseiro. Você fica com o quente e com um pouco do físico enquanto eu fico com as roupas encharcadas e as memórias frescas tinindo na retina. Eu adoraria não ter olhado nos olhos do porteiro. Vi um "é, cinderelo, perdeu" no olhar do maldito. Eu voltaria pra casa melhor, sei lá, fantasiando um pouco... Seria bom, sabe, essa realidade essa certeza esse pessimismo são meio frustrantes apesar de serem a melhor forma de me manter forte para lidar com o inevitável. Que se foda o porteiro com seu ceticismo! O que posso esperar de alguém que fica o dia inteiro sentado olhando a vida dos outros? Claro que ele tem que ficar amargo com o decorrer dos dias. Ele não viveu a doçura que nos envolveu nas últimas 24 horas, o cretino. Quero voltar aqui. É, quero sim, o quanto antes. Ou então você pode ir lá em casa, também. Não é todo esse luxo que você tem, toda essa acessibilidade, essa comodidade, esses bares famigerados, esse silêncio, enfim, essa mordomia. Lá em casa é caos, é parede carente de reboco, é cachorro arrastando a corrente em cima da merda, é criança jogando futebol com os pés descalços no asfalto áspero. Você vai gostar, é que nem nos filmes nacionais que você assiste, bem povão mesmo, sabe? Ah, sobre o que eu estou falando? Amei você por essas 24 horas e é melhor desaparecermos um da vida do outro mesmo, para mantermos uma imagem boa do que vivemos/tivemos juntos - o famoso eterno enquanto dure. Até nunca mais, sorriso lindo...

Doves - Satellites

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 04/12/2010
Código do texto: T2652415
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