MEU PAI É O DIABO
Querido diário,
Ainda não completei quatorze anos, mas já posso dizer com certeza de que não demorou muito tempo para que eu percebesse o quão horrível é o meu pai: tem pés de bode, barbicha, chifres (na verdade, quatro), rabo pontudo, asas de morcego, língua de cobra e pinças de escorpião no lugar das mãos. Seu hálito é horrível, cheira a enxofre e os seus olhos brilham um fogo penetrante e incandescente que carrega qualquer um à sedução e à violência. Vive a cuspir palavrões e a se vangloriar de feitos, no mínimo, duvidosos. Um esnobe suburbano decaído que sonha em dominar o mundo e moldar toda a humanidade a seu modo (a começar pelos próprios filhos).
É verdade! O pior é que quando eu era mais nova não conseguia enxergar esse estereótipo que agora vejo. Tantas vezes disse que ele era o melhor pai do mundo e que era lindo. É perdoável, afinal eu era uma criança e os pais são sempre os ídolos dos filhos. E ele se amarra nessa coisa de ídolo desde que era anjo e se deu mal, quando tentou destronar DEUS. Mas isso é outra história contada em outro livro. Certamente a expressão “que o diabo te carregue” nasceu comigo, pois embora eu o odeie não posso dizer que foi um pai ausente. Isso não. Carregava-me por todos os lugares e entre uma armação e outra me orientava sempre com a mais famosa das ressalvas:
_ Faça o errado direito. – e acrescentava – Sempre.
É, esse é o meu pai... Mas chega de jogar confete no coroa – afinal é tudo o que ele quer. A realidade é que eu o odeio mais do que a tudo e hoje eu deixei que ele soubesse desse meu ódio fazendo-me esquecer de você, querido diário, aberto, em cima do sofá. Ele ficou muito triste por conhecer meus verdadeiros sentimentos a respeito dele. Então eu o abracei e disse–lhe que o amava, que tudo que havia escrito era um rascunho de uma produção de textos que a professora de português tinha pedido. E o incrível é que ele acreditou!
Viu? Se o diabo é o pai da mentira, a mentira sou eu.
Boa noite, querido diário.
Inspirado no diário de Marcelly Cortez
Primavera /2010