Carta ao ACAS - vambora pro rancho!
Carta ao ACAS - Vambora para o rancho!
Meu caro ACAS;
Pelo jeito o bugio do Levi anda mais conhecido do que rótulo de Emulsão de Scott!
Nem sei o que dizer, mas agradeço muito sua lembrança e o recado postado. E é uma satisfação, já que somos colegas de escrevinhadas, aqui e no mundo lusófono.
Gostei muito de saber do passado, das andanças e, ainda mais, da variada especialização do nosso sanfoneirinho - mas, agora, quando estiver com ele no rancho, não vou dar-lhe sossego, pedindo que toque umas coisas diferentes.
Mas, sabendo que gosta dessa coisa de reunião de amigos, truco, guarânias e rasqueados num rancho sertanejo, só espero que o destino nos dê a oportunidade de juntar a turma, e partir para uma tarde de latumias, num rancho beira-rio.
E vamos convocar o Beto Vaca, que já vai tomando conta das despesas e organização da bagunça, o Santo, que agora está cheio de si, com um violão folk de 12 cordas, o Walter (patrão do Levi), que é danado de bom na cantoria das músicas mais melodiosas e, evidentemente, o Levi e sua sanfoninha de 80 baixos, além de outros amigos nossos, que também são do ramo.
Vamos baixar pro rancho, para passar umas horas em boa companhia (modéstia às favas, certo?). Depois de ajeitar o rancho e, quando a banha começar a chiar na panela, a gente se aboleta por ali e, enquanto o Santo e o Beto vão para a cozinha, pego o meu violão e vamos acompanhando o Levi, nas músicas e no copo - só é preciso algum preceito, porque em ambas as coisas, ele está muito bem treinado.
Chegando a tardinha, vamos tomar um banho de rio, pra tinhar a nhaca do dia. E depois de acender a fogueira, acendemos os matacões pra iluminar o lugar e, espantar os pernilongos, com o cheiro do "óleo queimado". A essa altura, o Ypioca - aquele, da história da "impossível", lembra? -, já terá pego uns piaus de três pintas, pra gente assar no alumínio e, fazer de tira-gosto.
Espero que leve um bom pajador, para declamar uns versos justos e certeiros no ar, enquanto o Levi vai acompanhando baixinho, numa milonga sanguínea e pacholenta.
"Este destino tem me feito cantor em muitas Pajadas
Parceiros de guitarreadas, em pulperias estranhas
Passa tempo de campanha, que em dia santo ou domingo
Cada um monta em melhor pingo, em dia folgado e campeiro
Vou chegando mui faceiro, pra pulperia, sorrindo
- Neste ritual primitivo, de orgias camperejanas
Me deu a sorte aragana, ser pastor neste rebanho:
Se jogo truco, ganho!, se cantar comando a farra!,
Pois sou mesmo que cigarra, pra cantar de contra ponto
Faço o cantor ficar tonto e, se manear na guitarra.*"
Se o pajadeiro vier, vou tentar levar à festa o "seu" Tionílio, um pernambucano da boa cepa que vive na terrinha e é grande versejador improvisado, para que nos brinde com uns bons e solares versos, fazendo ali, o encontro de duas fantásticas tradições brasileiras.
"Cantador o teu canto de improviso
É o mais nobre poder da criação
O teu verso tem a força de Sansão
É fatal, é perfeito e é preciso
Cantador do inconsciente coletivo
Canta a força do povo e o desengano
E a esperança que brota todo ano
Vai tecendo nos versos e nas loas
batucando a toada de Alagoas
nos dez pés de martelo alagoano**"
E pra gente não ficar para trás, vamos declamar umas quadrinhas (que não sei bem porque chamam de "décimas"), enquanto vamos bebericando alguma coisa. Acho que vou começar com esta:
"Cachaça é moça bonita,
Filha de pardo trigueiro,
Quem bebe muita cachaça
Não pode juntar dinheiro."
Ou esta, que já vi o cantor Leonardo declamar na televisão:
"A pinga é minha mãe
Meu pai é o garrafão
Papai traga a mamãe
Que eu quero pedir a benção"
E, depois de umas tantas "décimas" e, uns tantos goles, tem uma boa, pra fechar:
"No lugar que tem jacú
Inhambú passa e não pia
Quem não sabe fazer verso
Não se meta na folia
Quem é bom já nasce feito
Meu avô sempre dizia
Que o rato não faz festa
No lugar que o gato mia"
E penso que será a oportunidade para trazer à nossa companhia, os amigos do mundo lusófono, para que experimentem destas coisas simples e boas do interior e, possam nos brindar também, com sua participação. Daniel, por exemplo, falando um pouquinho da poetiza Florbela Espanca. E a poetiza Arlete, declamando uns sonetos bem fornidos. Será que eles topam?
Mas, um pouco mais tarde, será impossível deixar tudo de lado e, rumar para a divisa da cozinha, para provar da comida feita numa grande panela de ferro, cujo cheiro certamente tomará todo o lugar. Arroz carreiteiro e, feijão roxo com pelinha de porco, ou, talvez um feijão tropeiro... Acompanhamentos e temperos? Tudo colhido na hora, na hortinha do rancho.
E então, como sempre acontece, aparecerá a "Créu" (na verdade "Creonice"), a gata que apareceu e tomou lugar no rancho, acompanhada de alguns de sua descendência, para tirar uma "beiradinha" no repasto.
Depois de desimcumbir-se das atividades culinárias, o Santo vai pegar o violão e, provavelmente, me convocar para pegar o meu lá no carro e, fazer a "base" para seus solos intricados e certeiros. Base para música sertaneja não é coisa difícil e, lá vou eu. Mas, antes vou dar a dica de acompanhamento ao nosso sanfoneirinho, para não melindrar o outro...
Será a hora de levar as cadeiras e sentar ao pé do fogo. Mas, como é de praxe, Eu e Santo iremos lá para a porteira de entrada, para acertar a afinação dos violões. Dali, viremos caminhando rumo à fogueira, cantando "Velha Porteira" - exigência dele. Mas, já na companhia de todos, vou pedir a ele que a gente toque e cante "Saudade da minha terra", oferecida a você, e a todos os visitantes. E ali ficaremos até a madrugada, até o fogo baixar, cantando aquelas músicas antigas, que falam de coisas e sentimentos dos nossos ancestrais.
E, quando for madrugada, apagamos a fogueira e os matacões, para voltar para casa, sentindo o cheiro gostoso das matinhas da beira de estrada, com a alma leve e tranquila e...
...Mais felizes que o sanfoneirinho, de bombacha nova!
* Pajada de introdução em uma música de Noel Guarani, chamada "Destino Missioneiro".
** Primeira estrofe da letra de "Martelo Alagoano", música de Alceu Valença.