Desfribrilando a Vespa

Essa sua atitude de ficar deitada na linha do trem não foi muito inteligente, princesa. Não pelo suicídio em si, mas por deitar quando o trem não funciona. Os maquinistas também precisam descansar. Qual é o seu problema? Por que tanto quer chamar a atenção? Não te entendo: como pode falar que eu sou o melhor abraço que você já encontrou sendo que só sabe se afastar dos meus braços? Me dá a impressão de ser um passarinho que ama o conforto da gaiola - se é que uma gaiola pode oferecer algum tipo de conforto. Não sou gaiola, puta merda. Você sabe que tem a liberdade que desejar, comigo. Sabe que eu amo você de qualquer forma. O que eu quero dizer com "qualquer forma" é que eu amo você aqui do meu lado ou não. Aliás, você fica mais longe de mim do que perto e, cada vez mais, o sentimento aumenta. Como explicar? Serei eu, um novo Petrarca, ó, nova Laura? Fico cutucando esse sentimento como a um ninho de vespas. Sinto falta da dor que ele me causa. Então, vou lá e estico o pau da minha memória, chacoalho a porra toda e logo sou aferroado com a lembrança do seu cheiro, do seu sorriso lindo, do seu cabelinho de pontas dobradas, daquele cravinho preto na ponta do seu nariz, do seu bafo de cigarro, da sua hesitação e cara de quem viu o bolo murchar quando eu acerto todas as minhas suposições e coloco suas filosofias Lispectorianas embaixo do tapete onde sapateio com a minha torrente interminável de palavras que nada dizem além do que você tenta a todo custo evitar ouvir porque se acha superior a todo e qualquer sentimento de devoção à outro ser humano e isso até é compreensível e eu sinto um pouco de inveja dessa sua atitude inspirada em livros comprados pela internet porque se eu conseguisse ser como você eu não estaria escrevendo sobre você que está aí acendendo um cigarro atrás do outro com dores na lombar sem sequer lembrar que eu existo. Faz o seguinte: deita na linha do trem na hora que eu estou dentro dele. Quero sentir o solavanco dos seus ossos sendo esmigalhados, ouvir o barulho da sua pele sendo rasgada impiedosamente pelas lâminas das rodas do trem maldito e velho. Depois eu vou lá e pego um ou outro pedaço e guardo como lembrança.

Samiam - Factory

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 23/11/2010
Código do texto: T2631335
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