Berna, 02 de janeiro de 1947.

Querida,

Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias.
Depois que uma pessoa perder o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades — depois disso fica-se um pouco um trapo.

Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências minhas e de outras pessoas. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil
(…)
Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo o interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu… em que pese a comparação… Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões – cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante.

(…)
Uma amiga, um dia, encheu-se de coragem, como ela disse, e me perguntou: “Você era muito diferente, não era?”. Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou essa calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinquenta anos. Tudo isso você não vai nem sentir, queira Deus. Não haveria necessidade de lhe dizer, então. Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que faz um pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você – respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você – pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita – não copie uma pessoa ideal, copie você mesma – esse é o único meio de viver. Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia – será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Isso seria uma lição para mim. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade de alma.

Tua Clarice.

Clarice Lispector (Chaya Pinkhasovna Lispector - * Chechelnyk - Ucrânia, 10/12/1920 — + Rio de Janeiro, 9/12/1977)



--

São Sebastião, 06 de novembro de 2010

Cara

Percebo agora como após certo tempo de vida vai ficando complicado reconhecer as diferenças de tempo, de ideias, vidas. E lembro-me da época em que nos achávamos mais entusiasmados com a variedade e usávamos mais da inteligência nas comparações, nos contrastes... que alegria em descobrirmos as desemelhanças de gostos das frutas colhidas e deliciarmo-nos tanto com as mangas, quanto com as amoras, assim como com as laranjas e os coquinhos... que prazer! Os ponches de festa, casamentos, batizados e até nos momentos mais graves, como nos velórios, atirávamo-nos desabridamente a experimentar sabores variados. E os jardins então? Quantas cores, e olhávamos apaixonados pelas nuances de rosa numa mesma roseira... que fascinação!
Tudo que era divergente não era incômodo, mas ao contrário excitava nossos sentidos para verificarmos o novo, e quanta beleza descobrimos nesse empenho desperto. Mas agora... quando nos encontramos pela última vez e discutimos o respeito, que é denominado envelhecido para muitos, até alguns de nossa geração... que vergonha! Aqueles mesmos jovens, cabelos ao vento como dizia o Belchior, desistindo do quente e do frio, numa modorra decrépita, sem ver e enxergar como dizia o Mestre, sem paixão pelo aprendizado, sem ouvir e escutar os sons ritmados das palavras, sem mais discutir para conhecer, uma comodidade de alma como dizia Clarice, desperdício do que ainda resta de vida, anestesia da mesmice. Onde será que a nossa turma escondeu aquelas bandeiras de insistência pela liberdade e dos desejos que ainda não têm nome? Encontrando-as serviriam pelo menos para cobrir os ataúdes dos que desistem de si mesmos.

Abraços