Terceira Lei
Hoje foi engraçado. Eu fiquei com vontade de abraçar o que eu sinto. Porque o que eu sinto veio de outra pessoa. O que eu sinto foi exteriorizado do interior de outro corpo que não é o meu. E eu fiquei com vontade de abraçar essa pessoa que sente o mesmo que eu. Porque ela sente o mesmo que eu. Porque ela está sintonizada na mesma sintonia que a minha. Sem pressão, sem más interpretações. Fiquei com vontade de abraçá-la, pois ela teve peito pra confessar o que sente. Essa pessoa. Não a conheço, não mesmo. Ela não existe. É um holograma onírico, um alter ego que trabalho no subconsciente. Ela tem tanta vontade de viver quanto eu. Essa pessoa. Ela não gosta de correntes, visíveis ou invisíveis, que suscitem algum tipo de aprisionamento, físico ou mental. Essa pessoa não tem muito a ver comigo mas ao mesmo tempo tem tudo a ver comigo. Essa pessoa não aprecia a morbidez de festas decadentes e enfadonhas; ela me pega pelo braço e não deixa que eu pague o táxi na volta pra casa. Ela me acompanha na cerveja e faz comentários que me engrandecem e me encucam. Ela sente o mesmo que eu. E o que eu sinto, não sei definir. Mas sinto, sinto o sentir abstrato. E ela, a pessoa, também sente. Diz que sente, sente algo, mas não sabe definir o que é e acha que isso é estranho. Eu também acho estranho, porque não sinto nada e alguém não sente nada comigo. O mesmo nada. O mesmo nada cheio de querer evitar dor de cabeça e coisas pedantes. O mesmo nada de não querer podar as asas do outro. O mesmo nada de trocar mensagens por bel-prazer. O mesmo nada que atravessa preconceitos, que derruba a situação financeira que diverge, que mescla culturas, que cria quimeras antes de dormir, que vibra celulares em horas inesperadas, que surpreende todos os dias. Essa pessoa não existe. Deve ter nascido no século XVII, enfrentado leões ou guerras carnicentas com arco e flecha, fugido de dragões e mercenários. Essa pessoa deve ter morrido de amor, ter sido envenenada pela madrasta, ter caido na lábia de Don Juan. Essa pessoa não existe. Sonho com ela todas as noites. Sonho com o dia que ela vai surgir e mudar tudo, tudo, tudinho. Sonho com o dia que ouviremos The Smiths olhando os patos no Lago do Ibirapuera; com o dia que, bêbados, tropeçaremos a Rua Augusta inteira; com o dia que faremos amor sem nos importar com quem está no quarto ao lado; com a companhia em peças de teatro, em cinemas 3D, em festas decadentes com música hype tocando, com jantares em lugares com luz baixa sem música alguma além do tilintar dos talhares com os pratos. E sonho em corporificar "o abraçar o que sinto" em alguém e fazer tudo isso, mil vezes, e testar o desgaste: ver que ele não pode aparecer e estragar o que sinto. O que sentimos.
The Smiths - There Is a Light That Never Goes Out