O MENINO É O PAI DO HOMEM

No inicio tudo era colorido.

No principio das coisas tudo tinha cor, aroma e sabor bem definidos e deliciosos. Se eu olhava para uma coisa verde esse verde tinha alguma coisa a mais do que uma tonalidade de cor.

O verde tinha um sentimento embutido nele. Um significado oculto de se perceber o que era o verde. Se o verde viesse de uma luz de neon ou de um carro verde metálico, por exemplo, isso poderia elevar o significado do verde à enésima potência.

Qual era o significado oculto do verde? Não sei. Não sei dizer com exatidão o que significava o verde para mim. Talvez significasse a felicidade singela de ser, de estar, de viver e não saber por quê. Provavelmente a felicidade de quem lança seus primeiros olhares para o mundo.

O verde, o vermelho, o azul, todas as cores eram de fato mais do que cores, elas tinham um quê a mais, o quê da felicidade de existir por existir, de se ter esperança mesmo sem esperar por nada.

Um carro vermelho metálico era algo de extrema beleza. Suas cores cintilantes agradavam sobremaneira a visão. Era uma alegria inexprimível ver um carro vermelho metálico.

Um carro vermelho metálico era muito mais que um carro vermelho metálico. Um carro dessa cor era a felicidade em forma visual, uma espécie de êxtase ou de orgasmo ocular.

Nesse inicio das coisas de que falei, tudo era realmente colorido. Tudo tinha cores vivas e significado, mesmo que não significassem nada. A música do início colorido também tinha cor.

Parece coisa de gente sinestésica, mas a música era de fato colorida. Os sons manchavam de cores vivas as pobres caixas acústicas.

As músicas! As maravilhosas músicas! Já foi dito que sem elas a vida seria um erro. E eu concordo com esta afirmação.

Para cada música eu elegia uma tonalidade diferente de cor. Para cada música que eu ouvia, era esta por mim relacionada com uma pessoa diferente. Às vezes até mesmo para certas passagens da música havia a lembrança de uma pessoa.

E era assim, ouvir música, relacionar pessoas. O pai do homem criava assim o adulto que viria, relacionando, músicas, cores e pessoas.

Um mundo particularmente subjetivo, ricamente subjetivo, crescia e tomava conta de uma psique bastante sensível. O pai do homem criava assim o adulto que viria. (repeti a frase de propósito, não pense que fiz por erro, fiz por estilo).

No inicio colorido e esperançoso, as coisas pareciam que um dia enfim melhorariam. Mesmo que já fossem muito boas, mesmo que já fossem o melhor possível. Haveria, sei lá, alguém que viria e poria fim aos sofrimentos humanos, mesmo que estes fossem ínfimos.

Descobri depois que é próprio da infância as esperanças fundamentadas na vinda de um messias.

E nesse retrospecto colorido, até mesmo aquilo que não tinha cor possuía um aspecto multicolorido. A televisão era em preto e branco, mas a emoção transbordava em cores.

Víamos em tonalidades pretas e brancas, mas sentíamos em cores. As histórias em quadrinhos, mesmo sem cores, eram por nós enxergadas na maior profusão de cores possível.

E é isso leitor em preto e branco.

Eu vivia num mundo em que meus olhos transformavam tudo o que eu via no que de melhor eu poderia ver. E eu estou ainda repleto do meu século, estou recheado do que se passou.

O passado habita fortemente em mim em forma de lembranças e cores.

Que saudade! Que imensa saudade!

Não é possível mensurar o tanto de nostalgia que tenho de minha infância e de minha juventude primeira! Das pessoas que já se foram, das que não se foram mas que não convivem mais comigo, das cores, dos cheiros, das emoções, das festas, das músicas, do nhoque que minha tia fazia, da casa dos parentes...

A vida hoje se mostra tão monocromática. Tudo é preto, branco, tudo tem uma variedade tão grande de tonalidades cinzentas. Por onde estará andando a magia que me acompanhava?

E o gozo e estupefação ao ver os neons coloridos da noite na cidade?

Onde estarão estes sentimentos tão coloridos?

Meus olhos continuam os mesmos, mas a visão do infante se perdeu. O adulto hoje não têm mais ilusões nem crenças. O mundo para ele é algo sem remédio, sem conserto.

A música que ele ouve hoje já não tem a mesma beleza, as cores que ele vê agora já não têm a mesma intensidade, os doces que ele come neste século não são tão saborosos como os do anterior.

Em resumo desta ópera da tristeza e da nostalgia, o menino morto em mim queria ressuscitar por alguns instantes e emprestar um pouco da beleza que seus olhos viam a estes olhos cansados deste adulto desiludido.

Talvez o menino poderia vir com uma aquarela em suas mãos para pintar meus olhos fatigados de tanto ver monocromaticamente. Quem sabe eu poderia ver um pouco coloridamente com esse renascimento.

Tenho saudades de você, meu eu menino.

Menino que conseguia ver o mundo mais colorido.

Frederico Guilherme
Enviado por Frederico Guilherme em 27/09/2010
Código do texto: T2522803
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