Arraial do Tijuco, 2 de janeiro de 1.756
Querida Prima Quitéria,
Como tem passado? Desejo que o ano de 1.756 da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo seja próspero e que vosmecê goze de muita saúde e felicidade!
Gostaria de contar-lhe que mamãe e eu passamos horas muito agradáveis ao lado da madrinha e de vosmecê quando as visitamos. Folgamos em saber que o mal-estar da madrinha Francisca foi devido aos incômodos decorrentes de mais uma gravidez. Tomara que venha uma menina para fazer companhia à madrinha depois que vosmecê se casar, prima Quitéria! Penso que ela sentirá muito a falta de vosmecê...
Espero que seu Natal tenha sido feliz! Aqui o Natal foi bem diferente dos anos anteriores. Padre Eurico celebrou a Missa do Galo e fez um sermão comprido, mas muito piedoso. Depois da Missa, Dona Chica da Silva ofereceu uma Ceia de Natal e como papai trabalha com o Contratador João Fernandes, fomos todos convidados, inclusive o Capitão João Batista Soares e a família. Dona Chica esmerou-se: mandou trazer um lindo presépio de Portugal, muito rico de tecidos, ouro e diamantes! Nunca em minha vida tinha visto um tão bonito! Havia muita fartura de comida e bebida e muitos escravos bem vestidos servindo deliciosas iguarias! Parece que Dona Chica tem especial apreço por mim, porque quis mostrar-me sua casa (foi a primeira vez que estive lá) e confirmou que está à espera de mais um filho do Contratador. Depois, assuntou comigo se mamãe e papai aceitariam ser padrinhos de seu filho. Fiquei nervosa, não sabia o que responder, afinal mamãe não aprecia Dona Chica, mas como trata-se do filho do Contratador, achei por bem dizer-lhe que meus pais sentir-se-ão honrados com tamanha distinção.
Eu conheci minha sogra na ceia de Natal, pois Dona Pilar de Mello Marques Soares chegou de Lisboa alguns dias antes. José se parece bastante com sua mãe, que é uma senhora airosa e muito discreta, de rosto fino e tez aveludada. Fiquei surpresa em saber que ela viveu uma parte de sua vida aqui no Tijuco e que foi embora para Portugal com a família para casar-se com o Capitão. Mamãe e papai a conheciam e, pelo que pude perceber, mamãe se surpreendeu ao saber que Dona Pilar era a mãe de José. E mais, tenho a impressão que mamãe não gostou nada disso. Sem querer, ouvi-a cochichar com papai que não admitiria tamanha afronta se eu, Helena (ela disse meu nome com ênfase), me casasse com o filho daquela mulher. Nessa hora papai me viu e mudou de assunto. Estou até hoje com medo de cancelarem meu casamento porque mamãe não gosta de Dona Pilar. Estou muito afeiçoada a José e creio que ele também se afeiçoou a mim. E o pior, se meus pais cancelarem meu casamento, quem será ousado o bastante para ser meu noivo depois disso? Correrei o risco de ficar solteira para o resto da vida e nada poderá ser pior. Penso em falar com papai sobre isso, mas tenho medo. Conversar com mamãe está fora de questão – se eu lhe disser uma palavra, é capaz de ela cancelar meu casamento sem falar com papai! Para piorar, mamãe, que já não fazia boa cara durante as visitas de José, quase tem ofendido o pobre depois que soube quem era sua mãe. Minha boa prima Quitéria, que posso eu fazer ante tão infeliz sorte? Rogo a Deus todos os dias para que meu casamento não seja cancelado...
Ontem mesmo aconteceu algo muito estranho: mamãe perguntou a José se ele conhecia meu irmão mais velho, José Dilermando Filho, que está estudando em Lisboa. José disse que não o conhecia. E mamãe resmungou que não queria saber de Dilermando frequentando a casa de minha sogra. José e eu não conseguimos entender nada, principalmente porque é notório que Dilermando é filho de papai com sua primeira esposa, falecida no parto, que Deus a tenha. Na verdade, eu achei bem estranho, porque mamãe nunca deu afeto ou atenção a Dilermando que, sem dúvidas, é o filho preferido de papai. Será que madrinha Francisca sabe alguma coisa a respeito disso? Se vosmecê puder, minha boa prima, tente assuntar com sua boa mãe o porquê de sua tia Maria Joaquina, minha mãe, ter tamanha ojeriza a Dona Pilar...
Prima Quitéria, apesar de tudo isso falta apenas um mês e três dias para meu casamento. Meu vestido de noiva está pronto e tenho dedicado meu tempo a bordar a letra “J” nas peças de meu enxoval. E vosmecê? Como andam os preparativos para seu casamento? Já terminou seu vestido de noiva? Escreva-me e conte-me tudo!
Bem, queria mesmo desejar um feliz 1.756 a vosmece e sua família. Este ano trará intensas mudanças para nós duas, minha querida prima! Seremos senhoras casadas, donas de nossas casas, escravos e esposas dedicadas e mães zelosas...
Fique com o Bom Deus, nosso Pai. Dê lembranças à madrinha.
Com afeto, de sua prima que muito a estima,
Helena.
(Imagem: http://pedroa-o.blogspot.com/2010/08/ame-as-palavras-como-amas-as-pessoas.html)
Leia também:
Cartas de Helena - 15 anos
Cartas de Helena - Noivado
Querida Prima Quitéria,
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Gostaria de contar-lhe que mamãe e eu passamos horas muito agradáveis ao lado da madrinha e de vosmecê quando as visitamos. Folgamos em saber que o mal-estar da madrinha Francisca foi devido aos incômodos decorrentes de mais uma gravidez. Tomara que venha uma menina para fazer companhia à madrinha depois que vosmecê se casar, prima Quitéria! Penso que ela sentirá muito a falta de vosmecê...
Espero que seu Natal tenha sido feliz! Aqui o Natal foi bem diferente dos anos anteriores. Padre Eurico celebrou a Missa do Galo e fez um sermão comprido, mas muito piedoso. Depois da Missa, Dona Chica da Silva ofereceu uma Ceia de Natal e como papai trabalha com o Contratador João Fernandes, fomos todos convidados, inclusive o Capitão João Batista Soares e a família. Dona Chica esmerou-se: mandou trazer um lindo presépio de Portugal, muito rico de tecidos, ouro e diamantes! Nunca em minha vida tinha visto um tão bonito! Havia muita fartura de comida e bebida e muitos escravos bem vestidos servindo deliciosas iguarias! Parece que Dona Chica tem especial apreço por mim, porque quis mostrar-me sua casa (foi a primeira vez que estive lá) e confirmou que está à espera de mais um filho do Contratador. Depois, assuntou comigo se mamãe e papai aceitariam ser padrinhos de seu filho. Fiquei nervosa, não sabia o que responder, afinal mamãe não aprecia Dona Chica, mas como trata-se do filho do Contratador, achei por bem dizer-lhe que meus pais sentir-se-ão honrados com tamanha distinção.
Eu conheci minha sogra na ceia de Natal, pois Dona Pilar de Mello Marques Soares chegou de Lisboa alguns dias antes. José se parece bastante com sua mãe, que é uma senhora airosa e muito discreta, de rosto fino e tez aveludada. Fiquei surpresa em saber que ela viveu uma parte de sua vida aqui no Tijuco e que foi embora para Portugal com a família para casar-se com o Capitão. Mamãe e papai a conheciam e, pelo que pude perceber, mamãe se surpreendeu ao saber que Dona Pilar era a mãe de José. E mais, tenho a impressão que mamãe não gostou nada disso. Sem querer, ouvi-a cochichar com papai que não admitiria tamanha afronta se eu, Helena (ela disse meu nome com ênfase), me casasse com o filho daquela mulher. Nessa hora papai me viu e mudou de assunto. Estou até hoje com medo de cancelarem meu casamento porque mamãe não gosta de Dona Pilar. Estou muito afeiçoada a José e creio que ele também se afeiçoou a mim. E o pior, se meus pais cancelarem meu casamento, quem será ousado o bastante para ser meu noivo depois disso? Correrei o risco de ficar solteira para o resto da vida e nada poderá ser pior. Penso em falar com papai sobre isso, mas tenho medo. Conversar com mamãe está fora de questão – se eu lhe disser uma palavra, é capaz de ela cancelar meu casamento sem falar com papai! Para piorar, mamãe, que já não fazia boa cara durante as visitas de José, quase tem ofendido o pobre depois que soube quem era sua mãe. Minha boa prima Quitéria, que posso eu fazer ante tão infeliz sorte? Rogo a Deus todos os dias para que meu casamento não seja cancelado...
Ontem mesmo aconteceu algo muito estranho: mamãe perguntou a José se ele conhecia meu irmão mais velho, José Dilermando Filho, que está estudando em Lisboa. José disse que não o conhecia. E mamãe resmungou que não queria saber de Dilermando frequentando a casa de minha sogra. José e eu não conseguimos entender nada, principalmente porque é notório que Dilermando é filho de papai com sua primeira esposa, falecida no parto, que Deus a tenha. Na verdade, eu achei bem estranho, porque mamãe nunca deu afeto ou atenção a Dilermando que, sem dúvidas, é o filho preferido de papai. Será que madrinha Francisca sabe alguma coisa a respeito disso? Se vosmecê puder, minha boa prima, tente assuntar com sua boa mãe o porquê de sua tia Maria Joaquina, minha mãe, ter tamanha ojeriza a Dona Pilar...
Prima Quitéria, apesar de tudo isso falta apenas um mês e três dias para meu casamento. Meu vestido de noiva está pronto e tenho dedicado meu tempo a bordar a letra “J” nas peças de meu enxoval. E vosmecê? Como andam os preparativos para seu casamento? Já terminou seu vestido de noiva? Escreva-me e conte-me tudo!
Bem, queria mesmo desejar um feliz 1.756 a vosmece e sua família. Este ano trará intensas mudanças para nós duas, minha querida prima! Seremos senhoras casadas, donas de nossas casas, escravos e esposas dedicadas e mães zelosas...
Fique com o Bom Deus, nosso Pai. Dê lembranças à madrinha.
Com afeto, de sua prima que muito a estima,
Helena.
(Imagem: http://pedroa-o.blogspot.com/2010/08/ame-as-palavras-como-amas-as-pessoas.html)
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