Mamãe
Todas as suas fotos tem um sorriso e eu gosto disso. É uma lembrança boa que fica, que dá força para continuar vivendo a vida agora sem você.
Eu te visitei no hospital naquela semana, estava em férias do trabalho, não tinha feito muita coisa ainda. Quando recebi a notícia, uma semana depois, estava na praia. Tive que pegar o ônibus no dia seguinte, bem cedo, porque naquela hora era tarde. Ainda bem que era perto.
Eu não chorei ainda. Acho estranho, não sei chorar assim quando tenho motivo, parece que só quando é sem motivo que as lágrimas vem. E vem sem aviso, sem preparação nenhuma. Não que quisesse parecer forte, pois creio que é sempre melhor ser do que parecer, em tudo nessa vida. É que algumas coisas me deixam num estado de torpor tamanho, que os sentimentos se recolhem no mais profundo de um abismo que só eu conheço e sei penetrar. Mas também sei sair dele, quando quero e quando preciso.
Quando cheguei estava preocupado com alguns dos seus. Foi duro para eles esse terrível momento. Sua filha e eu os levamos todos para a casa dela, demos de comer, botamos todos para dormir, descansar. E conversamos, como você imagina que somos capazes de conversar. E rimos, mamãe, rimos das lembranças boas que íamos tirando do baú do tempo. Até de papai falamos, dos causos, das coisas. Ainda bem que nosso baú estava cheio de boas lembranças. Deu para ficar ali juntos, dividindo uma dor que no fundo não podíamos entender. Bebemos bastante naquele dia, mas só o suficiente para não perder a noção da sensata alegria.
Eu fiquei olhando para os seus, um por um. É sempre intrigante como fazemos parte de uma vida que não se aparta, que não se ajuda e nem se atrapalha, mas que se vive junto como dá e como se pode, como se quer. Acho isso o mais maravilhoso do que aprendemos, mesmo sem saber muito como aprendemos isso. A força dessa família que você formou reside exatamente nisso, na intuição sempre presente de fazer parte. Do reconhecimento de que a vida pode nos levar para bem distante, que sempre nos porá juntos em algum instante em que seremos sempre os mesmos a falar e viver sempre as mesmas coisas.
Algumas coisas ainda por se fazer, sim, algumas coisas ainda que exigem certas providências. Sempre há e sempre terá de haver. Talvez precisemos de tempo, um pouco mais de tempo, ainda que o tempo vá nos devorando um a um, os que ficarem não deixarão nada morrer.
Sempre me fez essa pergunta. Não sei se sou feliz, não me preocupo muito com isso. Eu nunca sei, como sempre disse, eu nunca presto atenção a essas coisas. Abro o livro da vida sempre na página de hoje. Gosto de folhear as páginas do passado, tem muita coisa boa e interessante lá. As páginas do futuro ainda estão em branco. Agora vou ter que escrevê-las um pouco sozinho, um pouco no silêncio absoluto e mesmo absurdo que faço sobre todas as coisas. Eu continuo o mesmo que bem conhece, teimoso, bocudo, aquele que quer ter um olhar diferente para as mesmas coisas e um mesmo olhar para as coisas diferentes. Sempre achou os meus desenhos e os meus escritos um tanto tristes. Talvez sejam mesmo e eu não posso ter a exata noção desse olhar para a tristeza. Certo que fui um pouco a alegria dos nossos tantos encontros em tantas ocasiões. Não fiz muita coisa nessa vida, mas procurei fazer bem o pouco que fiz.
Agora bate a saudade de tempos bem antes disso tudo. De quando morávamos no sobrado e eu em meus dias de folga ia com uma caneca de café conversar com você no tanque. Ah! Não me lembro muito bem de tudo que falávamos. Mas com certeza passávamos a limpo a vida de cada um, os acontecimentos, os ditos e não ditos, o passado e o presente, os alicerces para um futuro que sempre tem de ser assim como é, incerto e improvável.
Agora vou a sua casa e sinto a sua falta. Você cuidava de não precisar de mim e eu também de não precisar de você. A gente precisava apenas de trocar os olhares e as palavras com que íamos construindo um entendimento sobre tudo o que é tão difícil de entender na vida.
Eu nunca mais comi banana. Isso eu não entendo de jeito nenhum.
Hoje você faria setenta e três anos. Talvez tivéssemos feito uma festa no domingo. Aquela bagunça que só quem está dentro dela pode entender. Semana que vem fará sete meses que você se foi.
Haveria tanto para dizer, mas a vida interrompeu a conversa. Agora só posso dizer que aprendi a amar você no silêncio que ficou. Ah, mãe, tudo o que sobra do amor é só o silêncio. E dele vem todas as outras coisas, como a saudade e a solidão que se insinua no vão de alguns instantes.
Nunca poderemos saber que utilidade tem a vida e que lição podemos tirar da morte. Mas eu me peguei outro dia pensando na imensa obra que você deixou aqui nesse mundo, repassando na memória a história inteira, que hoje fica aqui para a gente viver e contar. Você deixou maravilhas que fogem da desatenta atenção: seus filhos, seus netos, seus amigos e suas amigas, seus irmãos e irmãs, sobrinhos e sobrinhas. Não parece muito se não se olhar de perto. Mas enquanto seu corpo era pousado na terra naquele dia de chuva, para descansar para sempre, eu olhava um por um e traçava os laços que os ligavam àquele derradeiro momento. E todos eles levavam até você.
Agora, por causa disso tudo, aprendi a entender e aceitar essa dor, conviver com ela da melhor maneira possível. Precisamos de tempo para entender tudo isso.
Eu me viro com as palavras que nasceram do pensamento, do meu entendimento, ainda que precário, da precariedade da nossa condição de existir entre dois momentos cruciais da vida inteira: o nascimento e a morte. E hoje, o que posso dar a você, são só essas palavras. Talvez sirvam para alguma coisa mais para nós que aqui ficamos, do que para você que se foi. E talvez, mãe, eu tenha usado a sua memória para falar mais para eles agora, para que entendam o que muitas vezes a gente pode não ter tempo de dizer.
A Ercília Luiz Lizardo (Chavantes, 20/09/1937 – Carapicuiba, 28/01/2010)
Todas as suas fotos tem um sorriso e eu gosto disso. É uma lembrança boa que fica, que dá força para continuar vivendo a vida agora sem você.
Eu te visitei no hospital naquela semana, estava em férias do trabalho, não tinha feito muita coisa ainda. Quando recebi a notícia, uma semana depois, estava na praia. Tive que pegar o ônibus no dia seguinte, bem cedo, porque naquela hora era tarde. Ainda bem que era perto.
Eu não chorei ainda. Acho estranho, não sei chorar assim quando tenho motivo, parece que só quando é sem motivo que as lágrimas vem. E vem sem aviso, sem preparação nenhuma. Não que quisesse parecer forte, pois creio que é sempre melhor ser do que parecer, em tudo nessa vida. É que algumas coisas me deixam num estado de torpor tamanho, que os sentimentos se recolhem no mais profundo de um abismo que só eu conheço e sei penetrar. Mas também sei sair dele, quando quero e quando preciso.
Quando cheguei estava preocupado com alguns dos seus. Foi duro para eles esse terrível momento. Sua filha e eu os levamos todos para a casa dela, demos de comer, botamos todos para dormir, descansar. E conversamos, como você imagina que somos capazes de conversar. E rimos, mamãe, rimos das lembranças boas que íamos tirando do baú do tempo. Até de papai falamos, dos causos, das coisas. Ainda bem que nosso baú estava cheio de boas lembranças. Deu para ficar ali juntos, dividindo uma dor que no fundo não podíamos entender. Bebemos bastante naquele dia, mas só o suficiente para não perder a noção da sensata alegria.
Eu fiquei olhando para os seus, um por um. É sempre intrigante como fazemos parte de uma vida que não se aparta, que não se ajuda e nem se atrapalha, mas que se vive junto como dá e como se pode, como se quer. Acho isso o mais maravilhoso do que aprendemos, mesmo sem saber muito como aprendemos isso. A força dessa família que você formou reside exatamente nisso, na intuição sempre presente de fazer parte. Do reconhecimento de que a vida pode nos levar para bem distante, que sempre nos porá juntos em algum instante em que seremos sempre os mesmos a falar e viver sempre as mesmas coisas.
Algumas coisas ainda por se fazer, sim, algumas coisas ainda que exigem certas providências. Sempre há e sempre terá de haver. Talvez precisemos de tempo, um pouco mais de tempo, ainda que o tempo vá nos devorando um a um, os que ficarem não deixarão nada morrer.
Sempre me fez essa pergunta. Não sei se sou feliz, não me preocupo muito com isso. Eu nunca sei, como sempre disse, eu nunca presto atenção a essas coisas. Abro o livro da vida sempre na página de hoje. Gosto de folhear as páginas do passado, tem muita coisa boa e interessante lá. As páginas do futuro ainda estão em branco. Agora vou ter que escrevê-las um pouco sozinho, um pouco no silêncio absoluto e mesmo absurdo que faço sobre todas as coisas. Eu continuo o mesmo que bem conhece, teimoso, bocudo, aquele que quer ter um olhar diferente para as mesmas coisas e um mesmo olhar para as coisas diferentes. Sempre achou os meus desenhos e os meus escritos um tanto tristes. Talvez sejam mesmo e eu não posso ter a exata noção desse olhar para a tristeza. Certo que fui um pouco a alegria dos nossos tantos encontros em tantas ocasiões. Não fiz muita coisa nessa vida, mas procurei fazer bem o pouco que fiz.
Agora bate a saudade de tempos bem antes disso tudo. De quando morávamos no sobrado e eu em meus dias de folga ia com uma caneca de café conversar com você no tanque. Ah! Não me lembro muito bem de tudo que falávamos. Mas com certeza passávamos a limpo a vida de cada um, os acontecimentos, os ditos e não ditos, o passado e o presente, os alicerces para um futuro que sempre tem de ser assim como é, incerto e improvável.
Agora vou a sua casa e sinto a sua falta. Você cuidava de não precisar de mim e eu também de não precisar de você. A gente precisava apenas de trocar os olhares e as palavras com que íamos construindo um entendimento sobre tudo o que é tão difícil de entender na vida.
Eu nunca mais comi banana. Isso eu não entendo de jeito nenhum.
Hoje você faria setenta e três anos. Talvez tivéssemos feito uma festa no domingo. Aquela bagunça que só quem está dentro dela pode entender. Semana que vem fará sete meses que você se foi.
Haveria tanto para dizer, mas a vida interrompeu a conversa. Agora só posso dizer que aprendi a amar você no silêncio que ficou. Ah, mãe, tudo o que sobra do amor é só o silêncio. E dele vem todas as outras coisas, como a saudade e a solidão que se insinua no vão de alguns instantes.
Nunca poderemos saber que utilidade tem a vida e que lição podemos tirar da morte. Mas eu me peguei outro dia pensando na imensa obra que você deixou aqui nesse mundo, repassando na memória a história inteira, que hoje fica aqui para a gente viver e contar. Você deixou maravilhas que fogem da desatenta atenção: seus filhos, seus netos, seus amigos e suas amigas, seus irmãos e irmãs, sobrinhos e sobrinhas. Não parece muito se não se olhar de perto. Mas enquanto seu corpo era pousado na terra naquele dia de chuva, para descansar para sempre, eu olhava um por um e traçava os laços que os ligavam àquele derradeiro momento. E todos eles levavam até você.
Agora, por causa disso tudo, aprendi a entender e aceitar essa dor, conviver com ela da melhor maneira possível. Precisamos de tempo para entender tudo isso.
Eu me viro com as palavras que nasceram do pensamento, do meu entendimento, ainda que precário, da precariedade da nossa condição de existir entre dois momentos cruciais da vida inteira: o nascimento e a morte. E hoje, o que posso dar a você, são só essas palavras. Talvez sirvam para alguma coisa mais para nós que aqui ficamos, do que para você que se foi. E talvez, mãe, eu tenha usado a sua memória para falar mais para eles agora, para que entendam o que muitas vezes a gente pode não ter tempo de dizer.
A Ercília Luiz Lizardo (Chavantes, 20/09/1937 – Carapicuiba, 28/01/2010)