Anjos e demônios
Meu querido,
Dentro de mim, acho que dentro de todos nós, existem vários serezinhos, anjos e demônios, palpiteiros, enxeridos, cheios de opiniões e conselhos. São nossas vozes da sanidade e nossos ecos de loucura.
De um lado me aconselham a recuar, voltar atrás, deixar de escrever cartas e inventar romance com você. Dizem que não se deve, que tenha juízo e isso e aquilo e tal e coisa. Você deve bem imaginar e eu não preciso repetir.
O outro lado quer mais motivos, mais temas, mais luas cheias, inteiras e plenas. O lado que inventa sensações e marca encontros inesperados.
Pensei um pouco, chamei a razão para uma conversa, fiz cara de santa e ares de conformação. Concordei com ela só para dar-lhe o golpe traiçoeiro. Ela me deixou, tranqüila, achando que eu fosse tomar um copo de leite e dormir o sono dos justos. Tola razão.
Quem quer dormir? Quem quer leite? Quem quer sono?
Você não imagina a cena que eu preparei para você, só de vingança contra o chamado da razão.
Então, meu querido, você disse que viria e eu fiquei aflita. Esqueci que você sempre vinha, que houve um tempo de vir todos os dias e era um tempo bom.
Fiquei aflita e com muitos planos na cabeça, despertando os danadinhos que, dos dois lados teimavam em me complicar. E tudo é tão simples!
Foi por isso que eu derramei o café na sua camisa. Foi bom derramar café sem queimar você. Sem criar mais nenhuma cicatriz, sem dores nem remorsos. Foi bom tentar limpar com a camisa no corpo perceber que era impossível, que tinha que tirar para poder fazer bem feito. “Bem feito!”, diria um dos conselheiros. “Cuidado!”, diria o outro. Mas às vezes uma dificuldade mais facilita, cria as soluções para tudo. Foi bom sentir que você ainda guarda as palavras e sabe dizer no tom certo, dentro de meu ouvido, faminto de abusos. Foi bom ouvir seus abusos e abusar de você, como se fosse a primeira vez, a única vez e a vez que nunca se acabaria.
Não podia servir café, apenas. Não podia repetir nada. E o pior, não podia me preocupar em parecer nada, que você me conhece e me adivinha logo.
E digo: você é o mesmo de sempre. Eu é que mudei. Todo o sabor de antes, toda a delicadeza e toda seda. Não quero nem falar dos beijos e nem relatar nada detalhadamente. Sei que todos os detalhes estão pulsando em sua memória como na minha.
Pena ter sido rápido e ter fim. Pena não ser agora novamente. Pena ser carta e não ser verdade.
Cada vez que eu penso num dos momentos em que estivemos juntos daquela forma, como nesse dia do café derramado, percebo que nunca foi decrescente. Cada vez foi maior, melhor, mais bem feito, mais doce e mais vivo. Será que só eu sinto assim? Mal tivemos tempo de conversar, você teve logo que ir. Melhor. Já estamos criados na ambiência das cartas e deve ser assim. Precisamos manter as letras circulando com nossas emoções entranhadas em sílabas, vírgulas e pontos finais. Os pontos finais de um texto são os melhores finais que eu conheço. Não terminam nada. Só fazem pausa. Mais longa ou curtinha. Só pausa.
Depois percebi que não servi nada além do café. Outro dia posso tentar. Num outro inesperado encontro.