Carta de suicídio em 3ª pessoa.

Encontrava-se tão distraída hoje que até sua amiga reparara e ela não era dessas fáceis de adivinhar. Tão difícil de ler que partia daí todo o medo, respeito e admiração que demonstravam para com ela. Sorria quando era conveniente, mantinha-se séria quando deveria e vivia nos conformes. Agora havia acabado de se despedir de alguém que tinha tanto afeto por ela quanto se poderia querer sem retribuir. Sentiu-se um pouco mal por causa da unilateralidade dessa relação. Achou estranho sentir algo, mas aquele dia já era diferente mesmo... Continuou andando e viu um cego mascando chicles, da mesma maneira daquele conto exaustivamente estudado para o vestibular. Ficou ali, parada por uns bons 5min esperando pela mesma epifania que a personagem daquele texto havia tido. Queria sair dali e fazer alguma coisa surpreendedora, fora do ritmo auto imposto, algo vindo do coração. Mas seu coração sequer acelerou aos poucos, continuou inato como estava já durante anos. Continuou no mesmo ritmo como se o cego mascando chicles fosse só mais um personagem secundário de Saramago naquele romance de cegos, onde ela também era uma cega. Seguiu caminho, passou pelo emprego da mãe e aquele sorriso bonito e caloroso não mudou um músculo dentro de si, retribui apenas com a etiqueta exigida, educadamente. Já não sorria com o coração nem ao menos pela própria mãe. “Mas o que, diabos, então, faz o coração? Nada, nada, nada!”. Vai por um fim nisso, despediu-se das pessoas ao seu redor, e acelerou o passo “pelo menos assim acelera essa droga que bate aqui”, quase correndo e pensando em todas as maneiras possíveis de se matar. Veneno, revólver, altura, gás, tudo. Chegou a seu prédio e pela primeira vez, desde que conseguia se lembrar forçou-se a entrar no elevador e subiu (com a alma saindo pela boca, com a respiração quase sumindo, com o medo tomando conta de tudo, ela só não queria morrer ali). Quando o décimo oitavo andar ‘apitou’, algo dentro dela ‘apitou’ também. Se existe alguma maneira pela qual ela não gostaria de morrer... Então não queria ela morrer a qualquer custo, ou seja, “não quero me matar, porra nenhuma!”. Entrou no seu quarto, escreveu essa carta ridícula, pensou que poderia viver se mantivesse seu medo de locais fechados e o enfrentasse todos os dias (sem que ele fosse, devidamente, eliminado), dobrou a folha em quatro, guardou-a na gaveta e foi de volta a sua rotina, agora, quase totalmente assegurada.

Amèlie

Eduarda Daibert
Enviado por Eduarda Daibert em 20/08/2010
Código do texto: T2448421
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