UM CADÁVER ENTRE NÓS
No início era eu.
Eu só, somente eu. Por um longo tempo pensei que apenas eu estava muito bom. Mas apenas eu, de um tempo em diante, já não era suficiente.
Todos se fundiam uns aos outros. Assim, por ordem do corpo, também dei início à fusão. Foi o dia mais intenso até então, foi mesmo, creiam-me, foi mesmo.
Contudo, a partir desta data, já não era mais eu só, era eu mais o outro, ou melhor, uma outra. Foi nesse dia intenso de felicidade, prazer, taquicardia e diarréia que teve início a minha ventura e também a minha falência.
É isso leitor, o prazer daquele momento, a felicidade e a taquicardia mudariam de face com o passar do tempo. Felizmente a diarréia foi a única que não me perseguiu esse tempo todo.
Foi o momento em que me entreguei, que cometi a maior traição que alguém pode cometer contra si mesmo, eu me dei a outro ser.
Eu e a outra construímos uma entidade muito tradicional, muito antiga e que até hoje povoam os sonhos de muita gente, principalmente a gente do sexo feminino.
Dentro dessa entidade, descobri depois, chega um ponto em que as coisas fundem-se de maneira tão profunda que para depois desfazer os pontos de solda que atam esses dois seres unidos é necessário o uso de ferramentas pesadas.
Imagine o leitor que o uso de pesadas ferramentas produzem uma dor muito intensa, muito profunda. Não se desfaz essa união sem deixar grandes estragos.
E a união persiste, perdura. Há momentos em que chego a pensar em prisão perpétua.
Que crime tão infame cometi para merecer tamanho suplício?
Já disse que no começo foi bom. É verdade, foi muito bom. Mas o tempo que a tudo destrói começou a agir sobre mim e sobre a outra.
Eu descobri que ela não era quem eu pensava que fosse, e desconfio que ela acabou constatando a mesma coisa. Mas vamos em frente, na esperança de um novo sol amanhã. Amanhã tudo melhora, tenhamos esperança.
Mas a esperança nos frustrou.
Passou-se mais tempo e mais tempo, a entidade já estava sem alimento há anos, a sede que ela possuia não era em nenhum momento saciada, além disso ela era constantemente atacada e gravemente ferida.
Esse estado das coisas persistiu até o ponto em que a entidade finalmente sucumbiu. Não agüentou o tanto que sofreu e veio a óbito. Na certidão constava a causa mortis: inanição.
Mas mesmo com a entidade morta, eu e a outra continuamos a nos comportar como se o cadáver não tivesse de fato morrido. Passávamos por ele e nem dávamos atenção.
Fomos tão tolos a ponto de ignorar aquele corpo em putrefação bem no meio de nós. O corpo era fétido e não servia mais para nada, mas ignorávamos a morte da entidade, e seguíamos indiferentes ao ocorrido.
Hoje, o corpo morto é somente ossos. Irrecuperável. Creio eu, meus crentes leitores, que mesmo Jesus Cristo com todo seu inquestionável poder teria dificuldade para ressuscitar os restos que sobraram.
Os ossos? Continuam entre nós.
Tropeçamos sobre eles, mas os ignoramos. Eu os vejo ali jogados no canto e tenho uma sensação de desgosto danada.
Mas há uma grande dificuldade em cavar uma cova e livrar-me de vez da ossada inútil.
Tenho esperança de um dia conseguir me livrar destes restos, contudo ainda me resta um medo. O fantasma que poderá aparecer depois de finalmente sepultarmos o corpo que apodreceu a muito tempo em nosso meio.
Não desejo isso a ninguém.