Carta ao Meu Velho Pai

Pai,

Apesar de já tomar consciência de que nada é eterno e entender perfeitamente a tua ausência tão precoce na minha vida, hoje resolvi lhe escrever (não “ti”, porque sempre lhe chamei de “senhor”).

Quero colocá-lo a par do que anda acontecendo por aquí, muito embora sinta o seu acompanhamento em todos os meus momentos. Mas é que, mesmo depois de 30 anos, ainda sinto muito a sua falta. Uma falta que as vezes dói; outras alegra e por aí vai.

Nesse tempo tive a felicidade de ver retratadas tantas “profecias” que me foram proclamadas pelo senhor. Sim! Chamo-as de profecias porque muitas aconteceram.

Sinto um orgulho imenso quando sou encontrada por alguém que não lembra do meu nome e diz: “a filha do João Rocha”. Fico de coração cheio!

Continuo com os seus traços e com muitas das suas manias.

O mundo mudou muito nesses anos Pai! Tanto, a ponto de muitas vezes eu não entender nada, mesmo tendo a consciência de que tive que amadurecer mais cedo ante a tua ausência, sob pena de não conseguir sobreviver de tanta tristeza. Mas a força da mãe fez com que a família não se desestabilizasse e tocasse o barco da melhor forma possível. Hoje ela é uma colcha de retalhos que busco entender a cada dia.

Suas coisas não estão mais na nossa casa desde a sua partida, mas ainda conservo a sua máquina de escrever, o seu cuco, o seu jogo de dados e alguns papéis escritos pelo senhor com aquele letra digna de um “calígrafo”.

Sabe? Por muitos e muitos anos a minha letra era bem parecida ... Mas atualmente, com o advento do computador, ela se tornou menos firme e não tão desenhada. Provavelmente hoje, em um teste grafológico, eu não me sairia tão bem quanto antes.

A sua herança foi tão grande que até hoje “encho o peito” quando comento as suas anedotas e todas as famosas histórias das quais o senhor foi o protagonista. E sou mais ou menos assim. Também amo gente e para essa gente sempre me disponho de coração aberto.

Sempre procurei seguir os meus sonhos e as minhas conquistas sempre foram curtidas como se o senhor estivesse presente mas, por outro lado, também caí alguns tombos, e neles o senhor também estava para me apoiar, especialmente nos piores momentos de decisão. Mas sempre decidi! Nunca deixei para trás uma decisão que deveria ser tomada. Assim como o senhor, acredito somente nos justos, nos bons, nos que não mentem, nos que não ludibriam. E por aí vou tocando a minha vida com a consciência limpa e, as vezes, com uma certa loucura para balançar o desencanto que vez ou outra aparece. Mas lhe garanto: os desencantos tem vindo em menor número que os encantos. Fique muito tranqüilo nesse aspecto. Procuro dar luz ao que não tem vida e já aprendi que a felicidade é encontrada nas pequenas coisas, nos pequenos feitos, nos carinhos especiais e que não têm preço.

Casei-descasei! Casei-descasei novamente! Não tive filhos e não tenho gatos ... Tenho a mim, a minha família, amigos verdadeiros e um mundão pela frente aguardando tudo o que ainda quero realizar.

Sou forte e fraca ao mesmo tempo, mas tento ser coerente sempre, assim como o senhor foi por toda a sua vida. Valorizo como ninguém os que me querem bem e deleto (o senhor não deve conhecer esta palavra, certo?), todos os que não me fazem bem. Em algumas situações me vejo um tanto sensitiva.

Sabe pai? A grande maioria dos filhos dos seus grandes amigos são meus grandes amigos, e não raras vezes nos pegamos rindo das “alegorias” que vocês faziam com a vida. E que alegorias! Todas com muita criatividade e inteligência.

O Baar Central ainda existe, mas nele se alojam outras gerações mas, para lhe ser franca, penso que exatamente com os mesmos objetivos da sua época.

Os carros estão diferentes. Não mais é possível identificar a chegada de alguém pelo barulho do motor, coisa que era normal na sua época da Fargo e da DKV.

Pai, as pessoas não escrevem mais cartas! Dá para imaginar que coisa triste! Atualmente na caixinha do Correio a gente encontra somente propagandas e contas. A alegria de pegar o envelope, virá-lo para ver o remetente passou. Uma pena.

A mesa Pai, a nossa mesa nunca mais foi a mesma, com o senhor sentado na cabeceira fazendo com que a gente comesse tudo o que estava servido, sem reclamar. Hoje, as crianças tem como principal palavra o “quero” e, em grande parte, manipulam os pais de tal forma que eles nem percebem.

O respeito também não é para muitos. A consideração? Ufa! Tem gente que nem sabe o que é isto.

Da sua máquina de escrever alemã manual, passei para por uma FACIT 8000, depois para uma OLIVETTI e agora ando com um notebook debaixo do braço me logando onde quiser. Tem graça? Não sei, o que sei é que não tem outro jeito. O mundo está informatizado e não dá para cair fora. Por outro lado, há pessoas que vivem dentro de um computador e nele fazem coisas incríveis ... ficam até mesmo doentes.

O futebol Pai. Eu não posso deixar de lhe falar no futebol, um esporte que o senhor curtia tanto. Hoje, na sua grande maioria, os bons saem das vilas, mas as vilas não saem deles, porque não há qualquer tratamento psicológico para fazer o cara passar de uma situação de miséria para outra, onde o salário é maior do que o de qualquer trabalhador bem sucedido que tenha passado a vida batalhando. E o país literalmente pára para ver tudo isto. O seu tempo de pagar um cachorro-quente para que o jogador tivesse o seu lanche digno, sem salário, já passou.

A mídia está cada vez mais tendenciosa e os programas realmente construtivos captando cada vez menos adeptos.

Ah! As Seleções ainda existem Pai, mas muito pouco lidas e pior: com um marketing de relacionamento que deixa qualquer ser estressado, perdendo a vontade de assiná-la, o que certamente não acontecia no seu tempo.

Mas, graças à Deus, ainda há poesia! E é nela que muitos se acolhem para entenderem essa vida louca. É nela que temos visto a mansidão do céu e entendido que tudo, apesar dos avanços rápidos em todas as áreas, vale a pena!

Beijos com saudades,

Rosalva

01/08/10

Rosalva
Enviado por Rosalva em 06/08/2010
Reeditado em 03/01/2021
Código do texto: T2421920
Classificação de conteúdo: seguro