Carta a alguém do passado

CARTA A ALGUÉM DO PASSADO

Namorado:

Estávamos na flor da idade e tínhamos o futuro pela frente. O encanto do primeiro encontro, as conversas meio sem jeito, procurando ambos esconder o interesse despertado. Tudo isto acontecia numa festa informal, em casa de amigos comuns. Trocamos nomes e telefones.

A cidade do Rio de Janeiro ainda era uma aldeia e as pessoas sempre conheciam os sobrenomes familiares e freqüentavam os mesmos lugares. A praia, lembra, era a do Arpoador – o “point” daquela época. Os jovens estudavam e trabalhavam, mas tínham tempo, nos fins de semana, de, sentados na areia, tocar violar e cantar até o sol raiar. Consumíamos apenas água, e nos embriagávamos de romantismo.

Começamos a namorar e a sair de mãos dadas, assumindo este compromisso perante os amigos. Fomos trocando confidências e nos aprofundando no conhecimento mútuo, ora verdadeiro, ora fantasiado para causar maior impressão. Nunca soube como você se sustentava ou quais eram seus objetivos práticos para o futuro. Mas, quando eu chegava em casa, ficava sonhando acordada, recordando os passeios de lambreta à beira-mar e os papos jogados ao léu. Foi um bom tempo.

A vida colocou entre nós dois um oceano e, não me lembro bem como ou porque, terminamos o namoro. Por uns tempos você seguiu seu rumo e eu o meu, levada pelo trabalho. O mesmo destino que nos apartou um dia, nos reaproximou tempos depois. Mas algo havia sido perdido ou tragado pelo oceano que nos separara. Não sei bem porque insistimos em recomeçar. Fizemos isso inúmeras vezes. Havia desentendimentos, nos afastávamos, sentíamos falta um do outro, sem confessar é claro, e telefonávamos para os mesmos números, que nunca mudaram. Era fácil ouvir aquela voz que soava como o retorno a uma época tão boa.

Não fomos feitos um para o outro. Éramos diferentes em tudo: profissão, interesses, hábitos e até os amigos, que no começo eram comuns, acabaram sendo desconhecidos. Isso me faz lembrar de uma música daquele tempo: “Não me amas, não te amo, te aborreço, me aborreces, não sei porque não te esqueço e tu não me esqueces. Eu não quero nem saber, tu evitas meu olhar, mas nossos olhos insistem em se encontrar”.

Hoje, assistindo um programa sobre Carlos Drumond de Andrade, que falava da saudade que ele sentia da sua juventude, também eu senti o mesmo por você. Não sei por onde você anda, nem se lembra do que vivemos. Que estas palavras escritas nesta folha, se esfumacem e sejam levadas, em uma aragem, até seus ouvidos. Que o sopro do sentimento que tivemos rejuvenesça nossos corações e nos alente nos dias de pleno outono da vida.

Sua namorada de outrora

Gilda Porto
Enviado por Gilda Porto em 05/08/2010
Código do texto: T2420554
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