Carta ao escritor
Meu caro senhor,
Atrevo-me a escrever-lhe. O senhor, melhor do que ninguém, sabe que este não é o meu forte; minha lide é a de tão somente contar histórias sem tê-las escrito. Ainda assim, atrevo-me a fazê-lo como um desabafo, se assim posso expressar-me.
Ao longo de minha vida – aquela que me é dada a cada história que o senhor decide escrever – limitei-me a narrar o que testemunhava. Às vezes, contentava-me em descrever os outros personagens, suas feições, seus jeitos e trejeitos, suas manias e desaires psicológicos. Outras vezes, esmerava-me em mostrar o cenário no qual se desenrolava a história. Em momentos mais ácidos, chegava mesmo a emitir comentários críticos sobre o comportamento de meus “cocriados”. Permita-me o neologismo para designar todos aqueles que, como eu, existem por obra e graça dos talentos e esmeros do senhor. Peço-lhe desculpas já, de antemão, porque sei muito bem que não me é dada essa liberdade que, contudo, insisto em exercer, e cujo motivo ficará evidenciado no transcorrer desta carta, ela também já expressão do usufruto desta contravenção.
Mas, deixe-me retomar o fio da meada. Dizia que tenho me acomodado servilmente ao desígnio que me foi imposto: narrar as histórias escritas por outrem. Muitas vezes, o senhor me concede, generosamente, ir um pouco além do papel acima prescrito. Ou seja, além de descrever fatos, circunstâncias, perfis físicos e psicológicos de meus amigos cocriados, foi-me possibilitado participar da história, agindo e interagindo de pleno direito e ser influenciado pelo desenrolar dos acontecimentos. É quando mais próximo me sinto da vida verdadeiramente vivida, ainda que ela o seja por seres imaginários. Outras tantas vezes, foi-me colocada a exigência de ser um narrador onisciente, aquele que tudo vê e tudo sabe, até mesmo aquilo que é ignorado pelos próprios personagens. Para muitos, certamente, essa condição pode ser muito atraente, dada a perspectiva privilegiada de tal ser sabedor, onipresente e onipotente, própria de um verdadeiro Deus ex-machina engendrado pelo Autor, este, então, um Sobredeus! Mas não! Depois de ocupar, por inúmeras vezes, essa papel tão glamoroso, somos tomados pela solidão infinda daqueles que passam pela vida sem vivê-la, apenas fazendo a crônica do que os outros vivem. Não! Decididamente este não é o papel que mais aprecio.
Às vezes, sou muitos, e aí a coisa fica mais divertida! Confundo-me com outros personagens-irmãos e narro as múltiplas histórias contidas na mesma história. É claro, conto com permissão do Autor que, por sinal, é exigido no extremo de sua maestria técnica e imaginativa.
E, às vezes, me escondo, tão sutilmente que a história até parece não ter um narrador. Uma delícia de dissimulação! Outras, dou a entender que sou o próprio Autor falando aos demais mortais: artifícios da ilusão!
O Autor, você bem o sabe, está condenado a escrever. Seu impulso criativo e sua liberdade imaginativa são pagos com a dura exclusão de participar da vida de seus personagens. Você sempre estará do lado de fora, olhando pela janela, com intensa curiosidade, às vezes com angústia, o que se passa no interior de sua história. Quanto a mim, embora agindo sob delegação, portanto, condicionado à sua vontade, estou lá, vivendo as emoções do que ocorre, se me permite o exagero retórico. É claro, sempre que você não me envia para a estratosfera dos deuses clarividentes!
Veja todo o seu poder! Chego a pensar que os autores sofrem de um complexo olímpico – escolhi essa designação a propósito de um condição psíquica que induz a criatura mortal a se eternizar em sua obra. Explico. Todo ser humano é mortal. O Autor, diferente de mim que sou um ser feito de palavras, é humano; logo é mortal! Lembro-me de certa vez que você me fez narrar esse silogismo em uma tragédia grega, mas é fato que foi daí que aprendi essa verdade. Pois bem, autores, humanos, mortais, desejosos de eternidade, escrevem! Escrevem na esperança de se imortalizarem: seus textos ficarão para muito além de suas vidas pessoais efêmeras. Se forem de boa qualidade, mais provável será a imortalidade; se não, paciência, o destino será o lixo da história e adeus pretensões de perenidade. Mas, na boa hipótese, o Autor se vai, a sua história fica, faz sucesso, e ele contempla, por todo o tempo em que durar a civilização letrada, o seu pequeno gesto de imortalidade. Instalado, talvez, ali de onde eu narro suas histórias quando me transformo no narrador onisciente...
E quanto a mim? Ah! Condenado a eternidade narrativa! Onde quer que sua história seja lida, lá estarei eu, a postos, para narra-la. Vivo a vida eterna do texto que você escreveu. Não posso simplesmente dizer: “Basta, não quero mais!” E uma e outra vez narrarei os fatos, as circunstâncias, descreverei meus irmãos cocriados – que, por sinal, também não podem usufruir de uma trégua por toda a eternidade letrada ¬– suas feições, seus tiques e manias, suas virtudes e pecados, para todo o sempre.
Chegamos, então, meu caro senhor, ao âmago desta missiva. Ah! Deixe-me dizer: aprendi esses termos de ligeiro rebuscado literário de tanto encenar seus textos. Mas, dizia, o cerne dessa correspondência irreverente e, quem sabe, até mesmo desprovida de qualquer senso de realidade, refere-se a uma decisão que resolvi assumir doravante em nossa colaboração mútua. Veja que já alterei os termos de nosso relacionamento: nada de subserviência, mas colaboração. Prossigo! Decidi que a partir de agora você poderá continuar a escrever suas histórias, tantas quantas forem necessárias para suprir sua sede de imortalidade, mas eu irei contá-las à minha maneira! Escolherei, por exemplo, o tempo em que narrarei a história, que poderá ou não coincidir com o tempo dos acontecimentos: misturarei presente, passado e futuro do jeito que me for mais conveniente para melhor narrar a história. Veja que não ignorarei meu compromisso com a verossimilhança de seu texto, apoio e permaneço fiel ao seu propósito de escritor, é bom que se diga! Digo apenas que exercitarei um pouco minha liberdade! Nos diálogos, que muito aprecio, tratarei de me esconder por trás de cada um dos personagens, como se lá eu não existisse. Eventualmente, darei umas guinadas na história, saltos que mudarão o rumo do esperado; sei que você não levará a mal, considerando o seu conhecimento de que uma boa história deve contar com imprevistos e reviravoltas. E outras iniciativas das quais você tomará conhecimento no momento apropriado, afinal, um pouco de surpresa também anima os escritores, não é mesmo? Prometo não exagerar!
De resto, reitero nosso pacto: a você, a eternidade do reconhecimento literário por seus escritos; a mim, breves momentos de liberdade ficcional. Um novo tempo, meu caro amigo, para nós dois.
Com o afeto de sempre,
O Narrador.