Antes que partas...
Minha inesquecível, inseparável e querida amiga,
Hoje resolvi escrever-te para dizer que finalmente percebo como foste realmente, presença marcante e constante em minha vida. Desculpe, se apenas agora percebo querida, foste minha companheira inseparável de todas as horas... Tudo a seu tempo, paciência... Mas, buscando em minhas memórias desde quando a conheço e a tenho ao meu lado, dou-me conta, penso que desde sempre, lembras...
Eu lembro de ti junto a mim desde muito criança... Lembras das nossas infâncias tão juntas... sabes, por vezes chego a pensar que foste contratada para de mim tomares conta, deve ser... e por isso, tão responsável sois que jamais me abandonaste... Desde então, crescemos irmãs siamesas, fazendo parte uma da outra... Sim, tu precisavas de mim para seres tu e eu, bem eu, precisava, preciso ainda, porque tu me conheces e estou acostumada contigo em minha vida, que penso será difícil, não sei se saberei viver desacompanhada de ti... desde sempre ficaste ao meu lado, sem reclamar, sem discutir, sem desgrudar de mim, sem jamais abandonar-me...
Lembras quando às vezes tentei enganar-te e fiz minhas travessuras de criança, desci pro porão... tentativas inúteis, tão logo a brincadeira iniciava-se, às vezes ia ao meio e Mamãe me surpreendia sem a tua companhia.... Lembras? Ah, logo, logo tratava de trazer-te de volta para ficares comigo... E te trazias sempre nas asas de um tufão ou de um xingão, de um castigo, quando não nas marcas de varas... ai amiga, aí penso que nós duas, chorávamos abraçadas... era tão doído... Lembras?
Lembras quantas noites passaste a sós comigo ou quando então, pela vidraça de punhas absorta, tal qual eu, enciumada observando o mano brincando na chuva ou com as crianças jogando bola, simplesmente na rua fazendo pirraça... e nós duas, caladas, observando tudo, sem graça... Lembro quando a maninha nasceu, eu quis festejar, enterneci... e distraída esqueci-me de ti, desculpa, era tão prazeroso enfim, ganhar alguém de verdade para brincar... Mas, não, a tua rival não ficou por muito tempo comigo, aos poucos fui percebendo que estava enganada... a maninha tomou de vez meu lugar, roubou do Papai não apenas meu colo, abusada, roubou-me toda a cena... tomou conta de todos os olhares, foi para o centro da roda, bagunçou, brincou, dançou e todo mundo aplaudiu, gostou... senti-me de lado e quem veio ficar comigo? Quem se dedicou a mim, quem quis ficar de fato comigo? Tu minha querida, tu que sempre estás disponível para ouvir meus lamentos, tu que não te cansas com minhas repetitivas chorumelas, ao contrário.... solidária e atenta, te sentas e choras comigo... Lembras o rio de lágrimas que choramos quando Papai foi embora, melhor dizendo... o quanto ainda choramos toda vez que aquela dor volta e nos recorda o nosso dia mais triste...
Por isso, hoje resolvi expressar-te o que agora te digo, pois nem sabes o quanto te respeito nessa travessia... afinal, ficamos mocinhas juntas, lembras? Quantos aniversários me fizeste companhia? Lembras aqueles em que não tive bolo, em que fiquei só, porque estava de castigo, lembras? Desculpe, não fiquei só, vieste fazer-me companhia outra vez... E lembras da nossa festa de quinze anos? Até a valsa vieste dançar comigo, lembras? Ah, minha amiga, esse reconhecimento é mais que merecido... Então começamos a dançar e quantas danças perdemos juntas? Lembra-te querida, quantos amigos Mamãe não deixou sequer de mim se aproximar... Mas tu ao contrário, tu estavas lá para me dar todo teu apoio, para novamente estender-me os braços... Assim, adolescemos, crescemos e até casamos juntas... E tu ali, fiel companheira...
Sei querida, que algumas vezes, consegui enganar-te, não sei se te entorpecia ou entorpecias a mim, mas houve momentos em que escondi-me de ti... Foram tão poucos, tão raros, que tenho certeza, tu me perdoas... entendes, era o meu primeiro amor, o meu casamento, a tão sonhada maternidade... Mas também amiga, quando te deste conta desse descaso meu, vieste arrasadora, perdoe-me, mas não sei de onde tiravas tamanhas forças para derrubar-me de tal feita... Lembras, me punhas de cama, em crises cíclicas chegaste a levar-me ao leito de morte e, não sei se por azar ou por sorte sobrevivemos... ficaram as marcas tatuadas em meu corpo, e certamente, por seres profundamente comprometida, tampouco aí me abandonaste ...
Então minha querida, penso que já nos conhecemos tão bem que até nossos desejos são iguais... gostamos das mesmas coisas... nos fartamos com aqueles dias cinzentos, nublados... chuvosos, aliás ainda que o Sol brilhe, a gente fecha as cortinas e em nós tudo fica acinzentado... então, assim recolhidas ficamos a remexer no baú do nosso passado, somos fãs de antiquários... ficamos a soprar poeiras antigas, ainda que mais dores nos tragam... é amiga, aí nós duas já sabemos o que iremos fazer... iremos abrir as feridas e junto, nossas comportas e, não importa... não importa que nos digam, não sangrem mais tais feridas... vamos chorar saudosas penso, por toda vida... e quando não houver mais nada para retirar do baú, a gente vai buscar fora e vamos juntas... sim, vamos assistir um filme bem triste, para continuar a decantar nossas dores, esse passado que em nossas almas persiste, um filme sem fim... É, parece que já nos é tão familiar, aquele cantinho escuro que temos para nos aconchegar, onde então abraçadas podemos deixar fluir, jorrar toda lágrima que brota daquela fonte que só nós duas sabemos onde fica e, em qual horizonte se esconde, que não podemos burlá-lo...
Ah, minha amiga querida... querida amiga Tristeza, não sei se pressinto aproximar-se enfim, chegada a hora de partires de vez da minha vida, penso que sim... então, quero concluir simplesmente dizendo-te obrigada... obrigada por não teres desistido de mim... quando tudo e todos me abandonaram e me deixaram só, sei que jamais me deixaste só, tu sempre estiveste comigo... No entanto, agora, faz-se necessário que partas... ainda que doa, preciso despedir-me de ti. Por favor, entendas preciso dar à minha vida outro norte... E, se acaso, vez ou outra nossos caminhos cruzarem-se novamente, por certo eu te abraçarei, mas deixarei que partas tão logo cesse meu pranto. Adeus...