J: Ímpar

Nosso beijo não foi o mais encaixado e nosso encontro foi bem fortuito e fugaz. O que eu queria mesmo, quando me encontrava andando de mãos dadas com você é que o beijo tivesse encaixado melhor. Não sei, foi bom para mim, mas dá pra perceber quando para a outra pessoa não foi. Senti isso vindo de você e fiquei com remorso (mas só um pouco) de ter partido pra cima. Creio que não fui capaz. Mas não resisti, era provação demais. Aqueles lances doidos de yoga, aquelas afinidades, aquelas experiências de vida parecidas em relação à paternidade, tudo isso saindo de seus lábios que a cada minuto que passava eu olhava com mais fervor e desejo. Como eu falei, me vejo como um mentiroso se paro e tento me olhar de dentro do corpo de outra pessoa. Fico com receio de falar as coisas, não tenho muita confiança nas minhas palavras porque acho que sempre estou sendo observado e/ou sendo avaliado e com isso creio que não consigo na maioria das vezes demonstrar a intensidade do que eu estou sentindo e colocar força e confiança nas palavras que brotam no meu cérebro e saem rolando da minha cabeça e se enroscam e ficam presas na minha língua com medo de caírem e serem hostilizadas ou mal interpretadas. Talvez por leseira do sono, achei o lance somente bom. Nada de extraordinário. Bom, adoraria repetir com menos sono, com menos pressa, talvez procurar o encaixe que deveria ter ocorrido pra você. Na despedida ficou claro que era só aquilo. Sim, um "a gente se vê" com o característico e sarcástico erguer de sobrancelhas me deu essa certeza. Olhei fundo nos olhos procurando veracidade nessa informação, tentando ver se no brilho dos olhos continha a mesma mensagem da maldita e linda sobrancelha erguida. Não sei no que eu quis acreditar, mas também falei "é, a gente se vê" e curti aquele momento como se eu fosse pra guerra no outro dia e nunca mais voltaríamos a nos ver. Daí então, os dias transcorrem normalmente, cada um em sua cidade, cada um com sua vida, com as suas paixões, seus bloqueios, seus muros e suas idiossincrasias. Mas de repente as coisas voltam, os acontecimentos daquela madrugada. Era como se eu tivesse assistido a um filme sem prestar muita atenção e a cada dia um novo trecho da película passasse na minha frente para que eu avaliasse cada frame, cada movimento, cada segundo. Então, durante um certo período eu revivi toda aquela noite na mais plena intensidade; tão intensamente como se estivesse vivendo-a novamente. E você claro que não vai acreditar, vai erguer a sobrancelha cética porque eu sou um contadorzinho de histórias e todos sabem que me apaixono mil vezes por dia. Mas não vai ser a primeira a falar isso. Já me falaram que eu fico "relembrando essas coisas porque você não comeu ela" e com o tempo a gente vai sabendo diferenciar o que uma carência sexual gera ou não. O pior é que essa afirmação é estranha, porque não consigo te imaginar nem de roupa íntima. Não lembro se fiquei excitado e quis transar. Aliás, não lembro nem do seu rosto direito. Nas fotos ele é de um jeito, pessoalmente é de outro e nas minhas memórias é um borrão que eu tento ficar decifrando dia após dia a forma. E então, nada acontece, tento escrever sobre você e não consigo. Tento conversar com você e me sinto um tolo. E de repente o acaso te coloca na minha frente. No mesmo lugar, na mesma hora. Na hora mais remota que eu poderia pensar em te encontrar. Agora me diz: consegue não acreditar no que eu digo lembrando do meu olho brilhando ao te ver? Eu sentia meu sorriso. Cara, é difícil sentir - pelo menos pra mim - o próprio sorriso. E o que fazer? O quê falar? Onde beijar? Como abraçar? Várias perguntas a responder, várias perguntas a fazer, muitos desejos, muito nervosismo e hesitação. Na despedida eu solto uma frase e você se livra dela me deixando estático e com os pés no chão. No outro dia solta a frase dando ela o ênfase de um juramento. Minha cabeça girou por uma hora inteira durante a madrugada e eu acordei com uma espécie de ressaca. Eu queria saber o quê você tem, exatamente, de tão... Não sei. Deve ser esse jeito indomável, essa carapaça, esse muro que você ergueu para se proteger do mundo e dos abalos sísmicos que os hormônios desenfreados podem gerar após uma história mal vivida ou coisa do gênero que tanto me fazem lembrar de você dia após dia. Sim, não é o rostinho lindo, essas cicatrizes, esse cabelo, esse cheiro diferente, esse cachecol azul, esses laços nos ombros, esse queixo fino, essas pernas grossas, essa sobrancelha arrogante e nem esse sorriso mais bonito do mundo que me tiram o sossego e me deixam piegas; não, não é. E quando eu descobrir o que é - se eu não desistir no meio do caminho - talvez eu te diga, um dia - isso se você tiver interessada em ouvir o que eu vou - ou não - falar. Hoje você não acredita muito no que eu falo... Se houver um amanhã, será que vai acreditar?

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 18/06/2010
Reeditado em 31/08/2012
Código do texto: T2326388
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