Cartas

Paris – França, 15 de agosto de 2000, terça-feira.

Esta é minha última carta. Minha carta de despedida, minha carta para nunca mais. O que houve? O que há? Ele me deixou, fisicamente e psicologicamente. Ele morreu. Nós tínhamos um pacto. A nossa fuga do tédio e o nosso amor por escrever sempre nos manteriam unidos. Não precisávamos pedir nada um ao outro, nosso olhar era do mais puro entendimento. E ele me traiu, me abandonou, prometemos dar um fim nisso juntos e deram um fim na vida dele antes. Ele morreu, foi para outro lugar, melhor ou não, e me deixou aqui, tendo que conviver com as lembranças, com o clima frio que combina exatamente com o meu coração. Nosso pacto foi quebrado, mas não de propósito. E agora olhando para as ruas de Paris, e olhando para todo esse branco do céu, resolvo me juntar. Tenho vinho e veneno e será assim que me juntarei a ele. A qualquer momento isso pode fazer efeito, vejo você em outra vida, mãe.

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Paris – França, 15 de agosto de 2000, terça-feira.

Escrevo, novamente, para dizer que não, não me matei, ou melhor, não consegui, não cheguei a tomar o veneno. De alguma forma, por força do hábito servi dois cálices, botei veneno em um e por ‘sorte’ tomei o outro. Quando percebi, após ficar esperando pela morte, o meu erro, impulsionei-me para o copo restante. E então o telefone tocou. Atendi e ouvi apenas um ‘fique aí, eu já chego’. Não reconheci a voz, mas essa voz me impediu de continuar. Essa voz apagou o tédio e acendeu em mim uma vontade de ficar, de esperar e ver quem vai chegar. Agora, levemente alterada, aguardo ou pela minha salvação temporária ou pela minha sentença de morte, pois creio ficar maluca de decepção. Ah, mãe, o tempo aqui está frio como sempre, mas por instantes acho que aqueci meu coração.

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Paris – França, 17 de agosto de 2000, quinta-feira.

Ele apareceu, mas não havia ligado. Simplesmente resolveu ver como ou se me encontrava. Que engraçado, eu jurei ter ouvido o telefone tocar e a voz era exatamente a mesma, sem urgência, mas com a intensidade para impedir alguém fraco de fazer qualquer coisa.

Você não sabe quem ele é, nem ao menos eu sei quem é. Tocou a campainha e disse “sou eu”. Oras, se fosse um ladrão eu simplesmente tomaria a outra taça. Mas era ele. Eu o olhei e o mundo resolveu virar, eu já não sabia nem ao menos o meu nome. A face não era a mesma, nem as roupas e nem o perfume, mas nos olhos dele eu via aquele meu eu morto, aquele outro que morreu e me abandonou, viva, aqui. Não sei se é ilusão, quem nunca acreditou em anjos? E se mudou a aparência apenas para que eu não descontasse minha mágoa por ter sobrevivido sozinha?

Quem sabe, mãe, o que vai acontecer? E não, não quero que venhas me visitar. Eu sei, ou melhor, não sei o que estou fazendo. Mas, pelo meu bem, tenho que fazer.

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Paris – França, 31 de agosto de 2000, quinta-feira

Até hoje mantenho aquela taça envenenada na estante. É o que me dá forças para continuar, saber que há sempre uma fuga ali, bem na minha frente, ao alcance das minhas mãos. Recebi mais umas visitas, elas não ligam mais. Tudo muda: rosto, gosto, cheiro, toque... Mas nunca o olhar. Elas vêm, conversam comigo sobre as minhas vertigens, ilusões, adaptações, escritas, etc. Mas nunca tive coragem de perguntar nada. É como se eles fossem meros psicólogos ou como se pudessem fugir ao ouvirem algo que ameaçasse seus segredos. Ah, é, mãe, eles são cheios de segredos. Como me conhecem? Como chegaram aqui? Ou por que todos têm o mesmo olha de sofrimento como a me pedir desculpas?

Sinto sua falta,

Sempre sua filha, Amelie.

p.s.: as visitas tem ficado cada vez mais raras. Não me engano, sei que o fim se aproxima.

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Paris – França, 19 de setembro de 2000, terça-feira

Não quero mais, cansei. Mas eu preciso que voltem. Fazem duas semanas. Me sinto abandonada, de novo, o tempo aqui, em Paris, junto com meu desespero, aumenta; e por mais que eu olhe para o copo eu sempre lhes dou uma segunda chance. Eu fico esperando um outro telefonema. Fico olhando pela janela, mesmo sabendo que me visitando ou não eles nunca serão vistos pela janela. Acho que a ânsia por vê-los torna resistível a ideia do fim. Mas até quando? Tudo tem perdido a validade e eu tenho medo de explodir. Te mando notícias quando puder.

Ainda sua filha, Am.

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Paris – França, 24 de setembro de 2000, domingo

Hoje é meu último dia. Veio aqui alguém sem desculpas nos olhos, sem tocar a campainha ou me esperar trocar de roupa. Me mandou parar com a ilusão, me chamou de louca, disse que eles não existem. E me disso que devo deixar a senhora morta e em paz. Esse sujeito, denominado meu pai, diz que vai me internar. Chegou em casa e tratou logo de jogar o veneno fora. Trancou a porta e desligou o telefone. Está passando um café enquanto espera a ambulância chegar. Ok, mãe, não importunarei mais a senhora com cartas alienadas, com suposto(s) fantasma(s) que me mantêm viva e com todo o meu egoísmo por ter sido trocada pela morte. Espero que sobre ao senhor que está na cozinha apenas a mágoa de não ter conseguido salvar sua filha. E agora é chegada a hora. Nada de veneno, infelizmente não sei voar, por isso, hoje, irei enfeitar as ruas de Paris.

Te encontro por aí, amada mãe.

De sua única filha, Amelie.

Eduarda Daibert
Enviado por Eduarda Daibert em 16/06/2010
Reeditado em 17/06/2010
Código do texto: T2323873
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