ARROZ e FEIJÃO
Após muitas e muitas vidas, após muitas e muitas gerações, finalmente brilha uma estrela no céu.
Um homem qualquer se casa com outra mulher que não deixa de ser quase nada e juntos produzem aquilo que se chama ser humano.
Ser humano.
Muitos imaginam que o ser humano é o cume da criação, tem gente que acredita piamente que tudo o que foi criado, tudo que existe no mundo da matéria e no mundo metafísico foi feito para o ser humano. Até Deus possui as nossas características! Claro que são todas muito bem ampliadas até o grau máximo.
Fomos criados à sua imagem e semelhança. O que muito admira é que entre bilhões e bilhões de galáxias, aglomerados de galáxias, super aglomerados de galáxias, o homem pensar com sua pequena razão que tudo gira em torno de si e desse Deus que ele criou, ou o Deus que criou ele, bem...
São essas pessoas que pensam que o homem é a medida de todas as coisas.
Somos tão importantes...
Primeira grande importância: todos nós morremos.
É, a morte não é privilégio do nosso avô que já é velho, ou daqueles miseráveis e doentes terminais nos hospitais. Ela é universal e certeira. Certeza terrível para os seres racionais que gostam muito de abstraí-la e de pensá-la apenas na terceira pessoa.
Uma pneumonia, um câncer, um tiro, uma facada, um acidente automobilístico e acabou-se a medida de todas as coisas. O parâmetro para se medir tudo vai apodrecer e ninguém de fato sabe se sobrará algum espírito, alma, consciência ou seja lá o que for.
Ninguém sabe, de fato, ninguém sabe.
Eu também não sei, é verdade.
Sou também alguém que faz especulações e não tem respostas para o terrível destino humano. Morte, morrer, perecer, deixar de existir.
Cruz credo!
Morte, razão de toda filosofia e toda religião.
Penso que imortais não se preocupariam nem mesmo com a vida. A condição de imortal superaria qualquer expectativa. Seria bom? Seria ruim? Não sei. Tem gente que diz que a morte dá sentido à vida.
Mas alguém só fala isso enquanto tem saúde e a morte parece ser uma perspectiva longínqua, bem distante, quase que irreal. Anestesiados pelos sonhos, esquecemos do caráter trágico de nossa vida.
Vai passar...
Um dia vi Dona Maria em sua casa fazendo suas atividades domésticas costumeiras. Ela era exímia dona de casa. Entrar em sua casa era como praticamente entrar em um ambiente asséptico.
Uma limpeza de fazer os olhos ficarem contentes. O nariz sentia logo o odor fresco e agradável da limpeza, do asseio.
Dava gosto entrar na casa de Dona Maria. As coisas estavam sempre arrumadas, em seus devidos lugares.
E se os filhos fizessem algum tipo de bagunça, lá estava Dona Maria a arrumar e catar as coisas que os filhos deixavam jogadas.
E um detalhe importante é que ela não reclamava por fazer seu serviço. Tinha em mente, sem expressar em palavras, que o que fazia era sua obrigação.
Dona Maria acordava sempre bem cedo. No máximo, mais tardar, às 06h00, Dona Maria já estava em pé cuidando dos cachorros, trocando a água dos passarinhos, recolhendo as toalhas no varal...
Ela não tinha preguiça, de maneira alguma. Nunca vi alguém tão bem disposto. Nunca a vi um dia sequer deixar alguma louça para lavar, ou encomendar uma pizza para não ter que fazer o jantar.
Dona Maria não parecia ser brasileira, mas alemã.
Dada a sua disciplina e constância. Nunca esmorecia. Vi Dona Maria chorar uma única vez, somente uma vez em mais de trinta anos a vi chorar e entregar-se aos seus próprios sentimentos.
Foi quando sua irmã mais nova morreu. Ela ficou muito triste. Mas, mesmo assim, estava forte. Todo o serviço e as praticidades necessárias nessa hora ela encarou com brio e sem reclamar.
Lembro-me de que quando era criança e ficava prestando atenção às conversas dos adultos, ouvia Dona Maria se gabar por suas panelas serem muito bem areadas, enquanto as de uma cunhada mal quista pela família deixava a desejar nesse quesito.
Dona Maria, esse era seu nome, mas Maria nunca era chamada por seu nome pelo marido. Eu achava uma coisa super estranha, mas ele sempre a chamava de “O”.
É verdade.
O modo como o marido a chamava era de “O” e ela não reclamava. Atendia prontamente ao chamado do marido. Afinal, ele era o provedor e na casa de Dona Maria nunca faltara o básico.
Jeito carinhoso e especial de tratar alguém, “O”.
Já às 09h00 da manhã Dona Maria começava a preparar o almoço.
Às 11h30 todos já estavam sentados à mesa fazendo sua refeição. Refeição essa bem feitinha, mas nunca com alguma coisa diferente.
Era sempre o mesmo acém cozido ou o franguinho frito. Arroz e feijão não faltavam nunca. De segunda a segunda, todos os dias não havia prato diferente, mas sempre arroz e feijão.
Dona Maria nunca trabalhou fora, nunca viajou para além de seu estado natal e nunca comeu num restaurante. Nem mesmo nos mais humildes.
A vida passava...
Dona Maria também cuidava de sua mãe já bastante idosa. O que era para ela um grande martírio. Não, ela não verbalizava isso, mas era perceptível o quanto era insuportável para ela aquela vida extremamente trivial.
Dona Maria, ser humano, cume da criação, um dia teve ideias para apimentar sua vida monótona.
Depois de pensar em diversas coisas, como por exemplo, pular de asa delta, saltar de pára-quedas, escalar montanhas e pilotar MotoCross, concluiu que seria mais excitante fazer tricô e crochê.
Comprava diversas revistas sobre esses assuntos e passava as tardes a tricotar e a fazer crochê.
Era sempre assim. Uma vida agitada entre o fogão, a pia, o tanque, o ferro de passar...
Enquanto Dona Maria viver haverá ainda muitos quilos e quilos de arroz e feijão para ela cozinhar. O ser humano, cume da criação, criado à imagem semelhança de Deus, Dona Maria, ainda terá muita roupa para lavar e passar, muitas panelas para arear e muita casa para limpar.
Sem viagens, sem comida diferente, sem sair de casa, sem ser chamada pelo seu nome, mas sempre, infalivelmente, a trabalhar até que a sua vida enfim chegue ao final.
Os parentes lhe enviarão coroas de flores e todos reconhecerão o quanto esse ser humano, cume da criação, criado à imagem e semelhança de Deus, foi importante, indispensável e teve uma vida muito feliz.
Que falta sentirão dela!
Rest in Peace, Dona Maria.