CARTA COM FIM
“Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros” (Clarice Lispector).
Acordei esta manhã mordiscando as tuas costas largas. Parecia que o tempo havia retornado e, na ausência dos ponteiros, o desejo fosse (de novo) possível. Depois de alguns minutos, notei que não havia corpo algum, muito menos possibilidade de retorno.
Levantei quieta e com passos pesados consegui chegar até a janela da cozinha e dar de cara com a realidade reforçada pelo sol forte tocando as telhas. Antes, no mesmo sonho, te vi tocar e ser tocado pelas belas pernas de outra mulher. Teus olhos gulosos pareciam abelhas invadindo a nossa antiga casa em busca do mel esquecido no fogo a dourar rodelas de abacaxi.
É estranho imaginar que tudo não passou de uma grande mentira tecida em nossos anos perdidos e acomodados pelas promessas sem razão de ser. Vesti uma roupa sem muito zelo e pensei em colocar algo no estômago. Mas uma dor perfurante de solidão me impediu de seguir adiante. Liguei então a máquina, na esperança de colocar no papel a experiência vazia que (eu sei) encherá este dia de hoje e, talvez até, o de amanhã.
Fiquei imóvel ante o teclado tentando achar as letras certas para desenhar palavras que não se dizem e apenas se podem sentir. Este vazio tão intenso ocupa agora todo o espaço e há um cheiro de dia sem vozes; noites insones; culpas a me corroer. Não quero sentir o RESSENTIR porque, ainda apegada a este plano tão terreno, entendo a invalidade de tal ação. Nunca mais vou ver teus olhos nem tocar tua pele. Tuas rugas não se embaraçarão nas minhas e muito menos nossos filhos irão conviver como irmãos.
Tudo tomou o sentido contrário e o relógio sem pilha marca 6: 13. Não tenho precisão de fazer os ponteiros retomarem a rotina. Sei que o dia passará impiedoso independentemente dos meus anseios, medos e perdas. Não há retorno nem desvios pelo caminho. Vou cruzar pessoas que não me interessam; trocar palavras sem querer; beijar sem ter vontade; e até dissertar sobre coisas que penso fazer, porém não as farei.
Esta certeza tão sórdida transforma a terça-feira e os próximos dias numa ponte falha, da qual se pode pender ao abismo. O ronronar dos gatos em súplica de afeto; a saudade dos filhos sempre tão longe e perdidos; a brisa do mar de meses de calmaria; nada vai fazer o tempo mudar o implacável de todos nós.
Assim, seguiremos o dito destino que nos foi dado ou que traçamos com as próprias mãos, idéias e convicções. E por não ter mais valia o mordiscar das tuas costas largas, posto que acordei e não havia mais nada além da solidão infinda, coloco agora a única coisa que falta nesta esta carta a ninguém: o ponto final.
11-05-2010