Carta a meu filho Daniel

Carta ao meu filho Daniel

Se eu fosse lhe escrever a quarenta anos atrás, começaria assim: Querido e saudoso filho; ao pegar a caneta e escrever-lhe essas mal traçadas linhas, espero que essa o encontre em pleno gozo de saúde e felicidades, na graça de nosso Senhor Jesus Cristo. Era assim o chavão. Mas mudou tanto? A caneta sim, pois uso agora o teclado do computador. Continuo querendo hoje e sempre que você tenha muita saúde e felicidades. Como vê, só mudou um pouco a forma, as intenções são as mesmas.Sentimos todos muitas saudades. As imagens virtuais que você nos envia, ameniza um pouco, mas filho tem que ser é de carne e ossos prá gente poder abraçar. Queria-o aqui comigo partilhando o dia – a – dia como era antes, mas não posso ser egoísta e travar-lhe os passos. Afinal filho é do mundo, Deus só nos empresta vocês uns poucos tempos. Depois partem como o vento. Vão buscar suas razões e entendimentos. Você disse da última vez que o frio aí na Irlanda está de matar, cinco graus abaixo de zero, com sensação térmica de menos dez. Aqui quem mata é o calor, trinta e dois positivos com sensação térmica de estar sendo cozido vivo. Mas quem mata mesmo ainda são as balas dos traficantes. Você que se desiludiu de ser professor de filosofia e ética, não sabe o quanto precisamos dos seus serviços, não somente os adolescentes, mas do Oiapoque ao Arroio Chuí, dando uma boa parada lá no planalto central. Lembro-me do seu desencanto e desespero com a falta de receptividade nas escolas, dos alunos, dos pais, dos próprios diretores. Mas a vida é feita de inúmeras tentativas. Uma semente aqui, outra acolá, quem sabe ainda se salva essa terra. Temos que ir fazendo e não esperar que os deformados do poder o façam, não é de interesse deles. Outro dia encontrei-me com o Eduardo, cunhado do Tico. Perguntou com você estava e mandou abraços. Na rápida conversa mandou-me também ignorâncias. Depois que lhe disse o quanto você estava gostando daí, ele obsequiou-me com essa pérola: - Prá mim um lugar desses não serve! O que eu gosto é de cerveja e Mineirão!- Viu meu filho o quanto precisamos de seu trabalho? O que você sabe fazer não é matemática; dois e dois são quatro, não é toma lá dá cá . Seu trabalho é incerto, por isso talvez mais bonito e instigador. As meninas pelo que observo também estão a cada dia na mesma; as feias trabalham e ajudam nas despesas da casa, as bonitas estão tentando ir para o big brother. Os meninos todos andam de bermudão e boné virado para trás e de tênis chinês comprado no Shoping Oi. Os mais idealistas querem ser jogadores de futebol, os menos, se contentam com um carrão velho com som potente tocando funk. As senhoras mais velhas ainda são católicas, as de meia idade, evangélicas e sempre dizem: O sangue de Jesus tem poder! Os homens velhos ainda estão amontoados na parte da frente dos ônibus para não pagarem passagem e dando graças a Deus. Por falar em ônibus nunca faltam aqueles com receitas médicas pedindo dinheiro para comprar remédios para seus filhos. À noite todos ainda cultivam os mesmos hábitos: As mesmas novelas, as mesmas caras envelhecendo em nossas salas e sem pedirem licença. Agora com a proximidade do inverno que deve ser de vinte oito graus, aos domingos aquele velho odor de churrasco saindo das casas tudo regado ao som dos nossos sertanejos que nunca pisaram em bosta de vaca. Depois o Faustão se incumbe de azedar o resto. Como você pode deduzir estamos iguais ao que sempre estamos. Termino desejando a você toda a sorte, com muitas saudades, do velho pai que te ama.

Ps: Será que não tem um cantinho aí pra mim?

Carlos A Funghi
Enviado por Carlos A Funghi em 09/05/2010
Código do texto: T2245779
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