Sesquicentenário: presente de grego
Caro amigo
Talvez você ainda se lembre destas palavras: “Foi o curumim / Para adormecê / Na samaúma/Mãe da floresta/ Plumas ao vento...”
Você lembra? Claro que sim. Você não esqueceria da canção de Nilson e Vital, esquece-ria? Amocario, é este o nome, não? Versos singelos e bonitos. Concordo com os autores, pois a samaúma é, sem dúvida nenhuma, a mãe da floresta. E que espetáculo é ver suas plumas ao vento.
Você pode estar pensando: “Mas que papo despropositado para uma carta entre amigos que já não conversam há tanto tempo!...” Porém, peço-lhe que continue lendo e entenderá meu intento. Amigo velho, você então recorda da nossa amiga-mãe, a velha samaumeira da Av. 16 de Novembro? Aquela de aproximadamente 150 anos... Aliás, velha apenas no sentido huma-nizado, porque no sentido, como diria... arbóreo da palavra, só e´ velha no sentido carinhoso, já que para uma samaumeira um sesquicentenário talvez corresponda a somente 15 primaveras. É isso: 15 primaveras!
Exuberante. Pomposa árvore. Árvore guia dos pescadores que a avistam da baía deste longe e podem por ela se orientar. Longeva, poética. Humana árvore.
Mas algumas pessoas são demasiado hu-ma-nas para perdoar que uma árvore, para elas velha, viva tanto, já que viver tanto é imperdoável num país como o nosso. Aqui as pessoas normalmente vivem pouco, muito pouco. Morremos de velhice aos cinqüenta, acusados de vagabundagem pelo presidente República, se já formos aposentados. Isso se não morrermos de fome, ou assassinados, quando crianças ou jovens. E se não morremos de raiva (da seleção, do governo, dos vizinhos chatos...) aos quarenta. Faço todo este circunlóquio para lhe revelar, em doses miúdas, a má notícia. Eu sei que você é nervoso por natureza, que se desesperou assis-tindo de camarote a seleção perder a copa. Sei que sofre ao ver o Fluminense na 2ª divisão. E sei também que assim já estou lhe deixando tenso. Por isso, prepare-se. Lá vai: estão cortando a velha samaumeira. Pronto. Consegui dizer... É verdade, velho amigo, estão primeiro amputando seus galhos, aos poucos, para então mais tarde deceparem-na no tronco, por completo.
Imagino que você pense que há a lei para impedir tal criminoso ato, que o Ibama pode agir (multar, prender, sei lá...). Mas eu esclareço, mano: é a própria lei, no momento, que obriga darem cabo da nossa amiga tão estimada. Parece inacreditável, mas é verdade: é ato legal este assassínio, este extermínio de um ser legendário e desde muito patrimônio de nossa ilha. E, se você se sente revoltado aí, distante que está, tente imaginar como me sinto, aqui perto, vendo a destruição de uma vida que nos é tão cara!
Você deve ter na cabeça um rebanho desembestado de dúvidas. Acontece que esse pre-sente de aniversário dado à samaumeira , um presente de grego para seus 150 anos (primeiro, único e último presente), é por causa do perigo iminente que ela (alegam) propicia à vida das pessoas que moram ali, sob sua cabeleira pujante e sombreira. E, para complicar mais, vândalos, segundo pessoas dali, recentemente atearam fogo no tronco da árvore, e enormes línguas vermelhas e ardentes logo-logo devoraram parte de seu caule. (O fogo trabalhou -- pasme! -- durante toda uma noite.) Foi um crime ecológico. O irônico, meu amigo, é que tudo começou num monturo de lixo que foi entulhado no tronco. Por quem? Pelos vândalos? Até poderíamos rotular de vândalos esses sádicos, o que ainda seria acusação pouca; todavia, o difícil é crer que, em vez depredar orelhões, pichar muros e casas, apedrejar telhados e cachorros, tenham os delinqüentes escolhido logo a samaumeira para seu sinistro entretenimento. Não posso crer nisso. Pergunto-lhe, amigo, de quanto tempo precisariam esses tais vândalos para acumular tanto lixo no tronco da planta, que aliás é imenso? Parece-me que os tais vândalos são, para falar literariamente, uma supra-realidade, personagens inventados para encobrir os reais perpe-tradores do gravíssimo delito. Ora, não é preciso ser Sherlock Holmes para saber a quem inte-ressa o aniquilamento da mosqueirense sesquicentenária. Desde muito tempo houve quem a-chasse por bem cortar-lhe alguns “galhinhos”, pois seu sombreiro ameno lhe incomodava.
Dia 20 de setembro, junto com dois amigos, fui vê-la de perto, um dia depois do dia da árvore. Batemos algumas fotos. E observamos alguns detalhes curiosos: o buraco no caule, que (segundo alegam) foi aberto pelo “fogo dos vândalos”, não o foi na verdade, pois já estava lá há muito tempo. É uma velha cicatriz, só reaberta pelo fogo. Mas já estava lá havia muito tem-po. Disseram, por outro lado, que mesmo sem a ação destrutiva do fogo, qualquer vendaval já poderia derrubá-la sobre as residências dali. Mentira! Suas sapopemas (raízes aéreas) estão firmes -- mesmo depois das chamas -- e se estendem pelo terreno, ampliando-se como uma teia gigante a entranhar-se pelo solo, dando-lhe incrível vigor. Não cai, tenho certeza. É tão firme quanto suas irmãs lá de Nazaré e da Praça Batista Campos.
Um engenheiro agrônomo, que reside ali por perto, opinando sobre o caso, acusou de incompetentes os que assinaram o laudo, visto que não levaram em consideração que na sama-úma não há folhas necrosadas, que o cerne do caule do vegetal pode não ter sido atingido, que as sapopemas a sustentam firmemente. Em síntese: a árvore não está morta. Estão matando-a!
Por isso, continuo a desconfiar de que há forças nada ocultas por trás da derrubada desta gigante-mãe da floresta. Ela, resoluta e corajosa, desafia o tempo e forja uma história de vida de um século e meio. Nasceu, pois, no Império, pouco depois da derrocada dos heróicos cabanos. Foi contemporânea da guerra do Paraguai, da Libertação dos escravos, da Proclama-ção da Republica. Presenciou cautelosa o apogeu e declínio da riqueza dos seringais. Sobrevi-veu às duas grandes guerras, ao estado novo de Getúlio, ao maldito Golpe de 64, à conquista da Lua. Viu o Brasil ganhar 4 copas do mundo. Principalmente, viu Mosqueiro tornar-se vila e festejar seu centenário. A mãe da floresta é, há três cinqüentenários, testemunha de todos esses fatos, e muitos outros mais.
No ano de 97 tivemos aproximadamente 52 semanas. Multiplicando isso por 150, teríamos em torno de 7 821 semanas. É muita vida! No entanto, aquelas que se dizem técnicos, em uma semana, uma só semana, decidiram que ela já não pode viver mais. Ela incomoda al-guns, por isso deve ser extinta. Os idiotas ignoram que não é ela sozinha que morre: morre um pouco de cada mosqueirense, que tomba e desaba também. Os idiotas ignoram que uma sa-maumeira contém em si um miniecossistema, pois abriga maternalmente (há 15 décadas) gera-ções de vegetais e animais (alguns vivem ali por toda vida): orquídeas, bromélias, samambaias, trepadeiras de toda espécie, calangos, pássaros, besouros borboletas... como disse, um minie-cossistema.
Meu caro amigo, é uma barbaridade! É revoltante e doloroso pensar que, para os que querem morta a planta, o que vale é a lei dos “incomodados que se mudem”. Será que a Prefei-tura de Belém e a Agência Distrital, antes de tomarem a decisão (sem novamente consultarem o povo da ilha!), procuraram verificar o imposto (IPTU) dos que ali, de vez em quando, passam seus fins-de-semana? Será que estão em dia com suas obrigações? E mais: sabe-se que os crimes ecológicos aqui em Mosqueiro sempre tiveram e ainda têm muito a ver com a omissão das autoridades. No caso da samaumeira, por que deixaram que construíssem casas à sua proximi-dade? Os terrenos foram re-al-men-te aforados antes de serem loteados? Foi isso? E a fiscali-zação? O que impede a Prefeitura de desapropriar a área, redimindo-se assim de seu erro.
Certamente, desde muito, um parque (uma praça com brinquedos e tendo como ele-mento físico predominantemente o verde, as árvores) cairia muito bem como o lugar. O povo agradeceria, principalmente a criançada e, é claro, a samaumeira -- que ficaria, para a felicidade geral dos ilhéus, preservadíssima, verde, majestosa, imponente.
Entretanto, meu amigo, isto que digo são só palavras, só desabafos. A ignorância, a prepotência e a mesquinhez -- que sempre se irmanam no controle do poder -- ganham nova-mente a queda-de-braço, infligindo à coerência e à solidariedade uma inconformada e revoltan-te derrota.
Eu sei o que você me diria, amigo. E o que faria se estivesse por aqui. Contudo, peço que tenha indulgência por minha covardia e falta de iniciativa, pois me sinto desarmado.
E sinto-me infinitamente triste, sabendo que o curumim não vai mais adormecer na samaúma...
Adeus, árvore-amiga!
Até breve, amigo. Escreva.