Carta de um Egoísta
Oi querida,
Sei que a saudade é muita, mas peço que tenha um pouco mais de paciência, pois terei que ficar aqui por mais algum tempo.
Eu não gosto daqui, entretanto sei que estou passando só uma temporada. Acredito que em breve retornarei para São Paulo, para seus braços e para ficar perto do progresso. Se não fosse assim, eu não teria aceitado vir trabalhar aqui nessa região erma e tão isolada de nossa nação.
Hoje eu tenho uma imagem bem diferente daquela que eu tinha quando assistia o Globo Repórter ou algum documentário sobre Ecologia. A realidade aqui é bem diferente daquelas cenas lindas que passam nesses programas. Na verdade parece exatamente o oposto, o que me faz sentir que estou no meio de um “inferno verde”.
O povo daqui é atrasado demais e eles têm uma ambição gigantesca. Eles só pensam em mudar a floresta amazônica para transformá-la como nós fizemos com a Mata Atlântica, a Mata de Araucárias e os Pampas gaúchos.
E, eu sei que minha missão aqui é parar o desenvolvimento dessa região. Nesse objetivo tenho trabalhado incansavelmente fechando empresas, interditando obras das prefeituras, fazendo multas e prendendo pessoas.
Já participei de operações de combate ao “boi pirata”, e assim estamos acabamos com essas atividades que destroem a floresta e geram muito emprego.
Eu e meus colegas, fiscais do meio ambiente, viemos para cá para acabar com a exploração da floresta. Nós não aceitamos esses fazendeiros, políticos e empresários que chegaram aqui na região para trazer mudanças no modo de produção. Por isso, estamos perseguindo todo mundo que tenta mudar o modo tradicional dos índios e dos ribeirinhos dessa localidade.
Nós criamos até um ranking para mostrar nosso trabalho. Dessa forma, todo mês nos reunimos para ver quem fez mais multas, e aquele que tiver mais “multas” aplicadas e mais “autos de infração” recebe como bônus uma rodada de cerveja de graça. É um jeito que achamos para nos estimularmos a trabalhar mais. E, confesso a você, que todo mês eu estou entre os que mais pontuam nesse ranking, sendo que por duas vezes ocupei o primeiro lugar do “podium da fiscalização”.
Você sabe bem que eu gosto de apetrechos tecnológicos, como celulares, palmtops, ipods, netbooks etc., mas não me conformo com essas pessoas daqui da Amazônia quererem tais coisas.
Outro dia visitei uma aldeia indígena e fiquei transtornado, pois vi que muitos indígenas usam celular, alguns têm televisão com antena parabólica em casa, e há aqueles que estão se alfabetizando em escolas bilíngües. Eu fiquei revoltado com tudo aquilo que eu vi, pois penso que eles têm que ficar congelados no tempo, vivendo como se estivessem na pré-história. Se dependesse de mim, nem roupa eles poderiam usar, pois quando o Brasil foi descoberto eles não tinham essas coisas. Alguns chegam a dizer que sou um “ecolouco”, um “ambientalista radical” ou “ecologista egoísta”, mas eu não me importo.
Imagino que você esteja vendo nosso trabalho nos jornais e nos sites na internet, pois sempre somos acompanhados por jornalistas, que tristemente mostram mais coisas contra nós do que a nosso favor. Eu particularmente também sou contra esses “exploradores da mídia”, mas infelizmente não podemos impedi-los. A minha maior queixa é quando eles colocam a opinião publica local contra nosso trabalho.
Essa região é muito conturbada, o que nos faz viver em meio a inúmeros conflitos e problemas. Muitas comunidades ribeirinhas daqui da região da Usina de Belo Monte conhecem diversos produtos industrializados, como queijos, presunto, enlatados, refrigerantes, chocolates, entre tantos outros. E, o pior de tudo isso, é que depois que eles conhecem essas coisas boas eles não se contentam em comer mais só o que a floreta lhes dá. Eles querem essas coisas boas que nós temos acesso. A meu ver, é esse desejo de ter essas benfeitorias do capitalismo que faz com que os povos da floresta concordem quando um fazendeiro chega aqui na região ou um madeireiro lhes oferece emprego, mesmo que os salários sejam ridículos.
Vejo que eles anseiam por escolas, hospitais, asfalto, sistemas de telefonia e internet, mas eu não concordo que essas melhorias devam chegar aqui, pois senão a floresta vai embora, como ocorreu aí no Sul e Sudeste do país.
É por isso mesmo que estamos mobilizando a comunidade daqui para impedir que a Usina de Belo Monte seja construída. Estamos convictos de que se ela for implantada um monte de mudanças vai acontecer nessa parte do país.
Meu bem, sei que eu e meus colegas estamos fazendo um serviço forte, por que não medimos esforços para impedir que as mudanças cheguem aqui na região Norte.
Estou satisfeito em saber que estamos “salvando a Amazônia”, no entanto, não vejo a hora de retornar para nosso estado maravilhoso, onde há asfalto, energia elétrica de boa qualidade, internet banda larga, shoppings e todos os demais benefícios da modernidade.
Quando eu lembro disso me bate uma saudade enorme, o que me faz desejar profundamente sair logo desse lugar triste para ir encontrar-me contigo.
Não vejo a hora de chegar aí para podermos comemorar comendo uma pizza de calabresa e tomando um café cappuccino.
Se dependesse de mim eu já teria pedido minha remoção para trabalhar num escritório do Sudeste. A infra-estrutura das cidades aqui é horrível, não há asfalto, nem praças, nem esgoto, nem coleta de lixo, nem nada que uma cidade precisa ter. E, após todo esse tempo trabalhando no Norte, eu descobri que amar a Amazônia é bom quando estamos assistindo televisão no conforto de casa, mas, agora, se dependesse de mim eu não ficava aqui nem mais um minuto, pois eu pegaria o primeiro vôo direto para São Paulo.
Eu sei que aí os fiscais de meio ambiente não têm muito serviço, e além do mais eles têm tempo de sobra para curtir cinemas, teatros, shoppings, academias, boutiques, bares e tudo de bom que as grandes cidades oferecem.
É bem verdade que aqui não tem nada disso, pelo menos não com a mesma qualidade, mas o que importa é que estou fazendo meu trabalho, impedindo que o conforto e essas benesses do capitalismo cheguem nessa região e mudem para sempre a paisagem e o modo de vida daqui. Isso eu não aceito de jeito nenhum, o que me faz suportar a distância que me separa de você !!!
Um grande abraço ...
Altamira – PA, 05 de maio de 2010.
Alessandro Silva
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Ilha de Marajó - PA, Maio de 2010.
Giovanni Salera Júnior é Mestre em Ciências do Ambiente e Especialista em Direito Ambiental.
E-mail: salerajunior@yahoo.com.br