Àquela que nunca maculei
Lembro-me de ti no meu primeiro semestre da faculdade. Chegavas calada à aula, com esse teu jeito de não chegar, e permanecia da mesma forma toda o tempo e teu nariz me dizia tanto de quão além tu eras. E lembro bem fotografado, não pelos cabelos revoltos que me remetiam à sexualidade que nem mesmo tinha ainda atingido, nem mesmo pelos teus seios que me faziam sempre lembrar dois leões-de-chácara a guardar teu corpo todo.
Nem mesmo pelo ar bucólico e carregado de teus ombros, seguidos de perto pelo mistério das saboneteiras, e, sem querer decepcionar-te, também não te fixei pelas mãos pianistas, que figuram uma grande paixão de minha infância, claras, decididas, delineadas e, no entanto, totalmente intangíveis, que começavam em pulsos perfeitamente finos e subjetivos, com aquele ossinho a apontar "sou mulher" e terminavam em unhas que nunca ousarei descrever por não confiar desta forma numa capacidade poética tão falha quanto a minha.
Erras, se presumes que guardei-te, tão firmemente à memória de artista, a figura devido àqueles teus traços laterais, munidos de latente carne e emeados pelas pontas sensuais dos teus cotovelos. Não digo ainda do motivo que me faz guardar-te eternamente entre os cachos que me povoam a mente, prefiro falar, nesse momento de devaneio, da tua minuciosamente latina pele amarelo-queimado que comporta esses sinais esparsos e distintos e convidativos e distantes; sou, nesse instante, tão vontade de olhar e olhar para sempre um pedaço de tua pele.
E teu ventre... teu ventre sempre coberto que me traz à tona a maternidade futura, teu ventre oculto pela camisa me parece o lugar mais conciliador de teu corpo todo e me instiga a vontade - tão contundente - de te pedir que acolhas, na superfície dele, minha cabeça atordoada, mãe carinho paixão que resume teu ventre. O que muito me importa, não sendo, no entanto, o que me prendeu à tua imagem, é essa singeleza eminente que te cerca e que se explode toda em não-limites e que, até agora, não sei precisar se te toca ou se emana de ti.
O que tem a tua figura que, uma vez presente, me preenche inteira e me impede de não te amar toda essa tua feminilidade que nunca antes eu vira materializada? Aqui eu chego, finalmente - e muito cansada e muito satisfeita e muito embriagada de te admirar -, no que me faz nunca te esquecer e sempre tentar te retratar com tantos e diversos nomes e histórias e facetas. Não é ainda a tal feminilidade descabelada ou essa tua face invasora que vem sempre me encantar, de dor e sofrimento e bucolismo e transcendência.
É a poesia, que me chega por todos os poros e de todos os meios e que só não te usa por ser a tua aparição a perfeita materialização da poesia. Em meus livros de teoria da literatura já posso grafar, à caneta bem escura, que a poesia és tu, posto que tu és a pura e simples poesia.