Cartas avulso 3
Genève, aos 10 de junho de 2004
Meu caro amigo,
Esta deveria ser uma das primeiras cartas, de uma troca de correspondência, que imaginei que trocávamos. Tudo começou num dia em que acordei com uma sensação de mal-estar. Assomei-me à janela e deixei o meu olhar vaguear pelas nuvens que acariciavam as montanhas, pelos pássaros que saltitavam, despreocupados, de galho em galho, pelas folhas verdejantes açoitadas pela brisa matinal. O céu, plúmbeo, ameaçador, talvez seja o culpado deste mal-estar, que amiúde me assola...
Assim, também eu, nesse dia, deixei a minha mente saltitar pelos galhos das minhas dúvidas de escritora. Por que escrevo, perguntei-me. Talvez, no início, deixasse que as minhas letras timidamente gritassem, o que a minha voz calava. Mas os dias passavam com o mesmo enfado de sempre. Dia após dia. Saciei essa lacuna com alguns bons escritores, alguns deles por si recomendados. Soube aguçar-me o espírito, a curiosidade e, hoje e sempre, não me cansarei de agradecê-lo. Recordo-me, como se fosse hoje, quando me disse: "Não os tente imitar. O propósito não é esse. Tente, primeiro, numa leitura inocente, colher a substância de cada verso. Veja como cada verso comporta um Universo." Isto quando falamos de Dante. Tento, sempre, colher a substância de cada escritor e não os quero imitar, pois longe de mim está a pretensão de ser como eles. Arrisco, somente, descobrir nas suas linhas, o segredo dos grandes romancistas, dos grandes poetas, absorver a essência de cada um, e, como eles, tentar mudar a opinião dos meus semelhantes. Sim, hoje escrevo para que me leiam, para que me sintam; um efémero ensaio de deixar uma ínfima herança talhada nos augustos murais da literatura. Será, unicamente, essa a razão de me despir, assim, diante de tantos olhares desconhecidos? Lembrei-me do Escrivão Isaías Caminha que escreveu: "Que tortura! E não é só isso: envergonho-me por esta ou aquela passagem em que me acho, em que me dispo em frente de desconhecidos, como uma mulher pública...”.
Quantas dores! Quantas angústias deixei escoar pelos meus calejados dedos! Quantas linhas escritas nos braços da solidão, maceradas no almofariz da incompreensão dos que me são queridos. Quantas e quantas vezes a noite arremessou, sem pudor, os meus andrajos, deixando-me nua perante alguns olhares perscrutadores, e me senti como uma mulher pública? Quantas guerras perdidas, quanto sangue derramado em algumas linhas solitárias, hoje órfãs!... Mas continuo! Continuo esta ensanguentada batalha entre a escritora e a esposa-mãe. Meu Deus! Seria mais fácil ser escritor ou renegar esta condição que às vezes torna-se escabrosa? Leio-lhe o pensamento, meu caro, e tacteio, nos contornos do seu rosto sereno, a resposta indubitável...
E continuo a escrever estas cartas, com um propósito. Não nego que me aflorou a mente de as tornar públicas - "Estas Cartas Que Vos Deixo", assim as intitularei, se um dia vierem a ser abençoadas pela luz do dia. As que lhe mandei, e as que escrevi, antevendo as suas respostas. Algo inexplicável, que eu justificaria inocentemente, como se uma brisa marítima chegasse, despreocupada, e me soprasse ao ouvido, as suas respostas, o seu saber, a sua retórica. É um desejo ambicioso, bem sei, que as vestes que deixei cair diante de olhares desconhecidos, ao longo desta troca de correspondência, possam trajar e acalentar as dúvidas mais atras dos novos escritores que, certamente, se depararão com as mesmas com que vivo... e que são tantas!...
Ainda agora, me pergunto se a algo servirão, ou se este meu romantismo exacerbado e medieval, não fará rir a nova juventude. É possível, como é possível que nunca venham a ser publicadas, e fenecem num amarelado papel, carcomidas pela poeira, como uma roupa velha esquecida num canto de um armário que acaba por ser carcomida pelas traças, pelo mofo dos anos, pelo bolor da vida. Sim!... é bem possível. Que morram, então! Que morram órfãs, bastardas! esbraveja a minha mão. Que a tinta da minha pena desbote com o passar dos anos... pouco me importa. Sempre, haverá um mata-borrão que absorverá todas as minhas linhas, entrelinhas, e o prazer de as ter escrito. Ah! Esta voluptuosidade, pecadora para alguns, este bailado lânguido do corpo com a alma, os aromas das especiarias asiáticas que nos afloram as narinas, e nos desconcertam quando deixamos cair, um a um, os sete véus... este deleite carnal e poético compensa, talvez, um futuro luto e todas as guerras perdidas.
Eis-me, de novo, meu caro confidente, mulher pública...
Eternas saudações,
Cristina Pires