Um conto para Tietê
Da porta do Céu nem cheguei a me aproximar e bater. Antes disso, já me foram escorraçando. São Pedro entreabriu uma brecha na janela de nuvens e foi disparando arrogância e grosseria. Que fosse eu ao quinto dos infernos porque ali era lugar de gente, alias, de almas boas, e não de demônios; contaria três dois um e se me achasse ainda diante dos seus olhos santos, chamaria o exército celestial para me conduzir ao território do Capeta, que se localizava bem mais à frente, descendo um miserável despenhadeiro. E de mim para mim:
- Diacho... Velho afetado!
Dei meia volta, encarei o caminho do inferno e arribei. Uma sede ‘desgracenta’, uma dor horrorosa pelo corpo todo... Mas a sensação de derrota era o pior de tudo. Morrer era mesmo uma merda! Que coisinha mais chata!... Nunca pensei que pudesse acontecer comigo tão cedo. É que fui currado, empalado e esfaqueado pelos tieteenses!
Mas isto mais muito tempo... Tanto tempo que já até me acostumei ao fogo escaldante deste Inferno de bosta... Rotina desgraçada!... Aqui tudo é queimar, queimar, queimar... Falta de imaginação, criatividade ou sei lá o quê... Ando de saco cheio de tanto queimar nestas labaredas lazarentas!
Ah, deixa eu esclarecer antes que digam não estar entendo nada. Nasci no Siara Grande e lá vivi até 18 anos. Aos 12, desandei no crime por nenhum motivo aparente. Minha primeira vítima foi um primo de 8 anos; enforquei-o com as mãos e depois o rasguei inteiro com um cuitelo só para ver o que havia por dentro! Adorei, era tudo muito colorido e excitante! O ser humano é muito mais bonito por dentro do que por fora... Pena que apodreça tão rápido!
E fui pegando gosto pelo matar. Assassinei homens, mulheres e crianças; roubei o que quis, estuprei o que se movia e acabei sendo perseguido pelos macacos da Força Pública. Achei melhor, então, vir para São Paulo. Nem dei adeus aos meus parentes, aqueles idiotas que se deixavam escravizar por um fazendeiro pançudo e explorador... Ah, como eu tinha vontade de beber o sangue daquele coronel filho de uma ronca e fuça e espicaçá-lo todinho! Acho que só ganhei a vida eterna no inferno de fogo porque não botei no chão o bucho daquele miserável... Mas já passou, deixa estar. Se um dia eu conseguir fugir daqui, volto lá para um acerto com a semente dele!
Então encalhei em Pirapora do Curuça e me arranjei nos arredores do Porto onde se reabasteciam os Bandeirantes oriundos de Araritaguaba, que desciam rio abaixo para ‘maracutear’ o ouro os cuiabanos. A data era 8 de março de 1867, dia em que a cidade assumia oficialmente o nome do rio, Tietê, que na língua dos irracionais tupis significa águas volumosas.
Enquanto esmiuçava a Pedra do Curuçá a procurar o ouro referido por Anchieta, ia fazendo o que mais gostava, quando na terra: roubar, estuprar, matar, esquartejar e comer bunda assada. Uma delícia! Isto descobri por acaso num dia de fome arretada e não suportava mais comer peixe frito na banha de porco, assado na brasa ou cozido numa panela de ferro, que eu roubara de um bandeirante vacilão.
Após três longos anos de ferrenha procura perdi a fé de encontrar o Tesouro do Curuçá. Alí não havia ouro nenhum... Só podia ser delírio de Anchieta, aquele aleijado de uma figa... Desanimei de tudo e já não via graça em matar nem comer. Dor na alma, baixei a guarda, vacilei...
Um belo dia, enquanto esquartejava uma negrinha, no Pito Aceso, alguém me meteu fogo pelas costas! Uma chuva de chumbo, pólvora e fogo! Só senti a formigação me invadindo o corpo todo... Uma tontura, uma nuvação, o tombo e mais uns ‘par de nego’, em cima de mim, a me socar, me bater. Se não me engano, me jogaram dentro do rio e os peixes ‘me comeram eu’ pouco a pouco...
Quando tomei consciência plena da situação, estava sendo escorraçado do terreiro do Céu e mandado ao Capeta. Falam que o Céu é bom e o Inferno é ruim, mas, que nada, bom é o Inferno que não rejeita ninguém! Tudo bem que a gente fica queimando o tempo tudo, espetado neste garfão imenso... E isto é um saco! Mas pelo menos não se é rejeitado!
Tem muita coisa errada nesta vida. Eu vivi cerca de 20 anos na terra. Fiz todo o mal que pude, mas, estou queimando no fogo de Satanás há mais de 140 anos... Que graça tem isso?! Se eu fiz o mal durante 20 anos, que queimasse no fogo do Cão durante 20 anos...
Mas, deixe estar... Daqui da janela do Inferno, quando consigo fugir do grafão imenso, fico ‘nalizando’ Tietê. Sei de tudo que acontece aí. Tudinho, tudinho... Já tentei fugir centenas de vezes, mas só consigo me livrar do espetão! As muralhas daqui são intransponíveis e nem são de ferro e concreto; não de nuvens e pressão atmosférica! ‘Não há rompê-las’ como diria os ‘becharas’ da vida.
Não consigo esquecer Tietê nem a chuva de fogo que me aplicaram às costas... Quando os Capetas estão na esbórnia com Satanás, fujo do espeto e me boto na janela a espiar o Brasil, o Siara Grande e principalmente Tiete...
Ultimamente tenho evitado ser flagrado fora dos ganchos... É que estou tentando ganhar, por bom comportamento, uma promoção para Capeta... Ter mais liberdade, ficar mais solto e bater em vez de apanhar! Mas, mesmo nas rápidas escapadas, dou conta de tudo.
Eu vi a negrada ser expulsa da terra com uma mão na frente outra atrás, e, como último sinal de resistência construírem a Capela de São Benedito, no centro da cidade; e assim poderem regressar, pelo menos uma vez por ano, às origens. Resistência fraca, quase servil, mas que se há de fazer quando não se tem tutano no osso? É fazer o que disse a Sangue Azul: relaxar e tentar gozar!
Vi o começo e o fim da Estrada de Ferro; os trens lotados de brancos europeus sobrantes da industrialização, e por que não dizer da evolução humana? Se ofender, tudo bem, fica o dito pelo não dito. Vi as sete mortes... Vi Monteiro Lobato, o nobre decadente, humilhar o Povo Paulista em sua fraca Urupês, e Cornélio Pires timidamente tentar desmenti-lo...
Vi também Tauro Sargão ressurgir à vida depois de cumprir maldição durante ‘Mil Luas Azuis’ e beber o sangue do poderoso do lugar... Vi o São Benedito sarará emergir das fuças do Bigode de Aço Branco, o Senzalão vergonhoso, o Vlamir não querer ser o eleito, a destruição do Luis Antunes, o tripudiar via semanários e o estampido do chicote afiado do Imperador Pangaré...
Estou no Inferno queimando diuturnamente, mas estou presente em espírito! Ouço os pensamentos, vejo as atitudes de todos, eu sei de tudo...
Preciso correr e espetar-me no garfão, senão, perco a promoção. Quero muito ser promovido a Capeta! Fica-se o tempo todo sem fazer nada... Só andado para cima e para baixo açoitando e cutucando os condenados, pode-se ir à janela quando bem entender, e o melhor: pode-se ir à Terra, disfarçado, claro! Tudo que eu quero é voltar a Tietê rsrs.