Querida Íris
Estou escrevendo esta carta presumindo que, quando tenhas compreensão da vida, eu já não esteja contigo ou, na pior das hipóteses, não mais tenha condições de discernimento.
Hoje eu conto 72 anos de idade e tu ainda não tens oito... uma boa diferença, hein? E é esta distância etária que me leva a escrever-te esta carta, na intenção de traçar uma linha paralela da nossa infância. Nasci na terceira década do Século XX e tu, na primeira do XXI - ou seja, eu nasci em 1938, tu em 2002. Ambas já fazendo história no terceiro milênio, embora quase um século nos separe.
Quando eu tinha a tua idade não havia grande parte das facilidades
que, para meninas e meninos de hoje são naturais - para não dizer banais. Por exemplo: o que tem demais uma criança possuir e saber operar um notebook? Pois se já houvesse uma máquina do tempo (nota que eu digo "já", pois quem duvida que ao leres esta carta já tenham construído uma) - continuando... na possibilidade de uma regressão no tempo, uma criança do Século passado, como eu fui, ficaria perdida entre tantos aparelhos eletrônicos.
Minha neta querida, mesmo acompanhando o progresso, que surgiu de uma forma bastante vertiginosa, comparo teus tempos de criança com os meus. Jamais entenderias com seriam nossas brincadeiras nos dias de chuva ou frio. As noites, então? Se na época não havia televisão, nem MPs e sua série... No mínimo vais achar que a nossa vida era muito chata, mesmo. Talvez imagines uma luz meio fraca e uma avó contando histórias da Carochinha prá gente e outras figuras estereotipadas dos "tempos antigos". Ledo engano, minha querida Íris.
Como nada disso existia, quem tinha um carro, "geladeira", rádio ou toca-discos era considerado rico ou, como se dizia, "bem de vida"...
O que se fazia, então?
Não tinha refrigerador para gelar as bebidas? sempre havia um poço de água bem geladinha onde se mergulhava um saco de aniagem com as frutas e os refrescos - isso nos domingos! E, afinal, como se pode querer uma coisa que não está ao nosso alcance? Nem pensar...
Quanto à música, sem facilidade de ter um aparelho, sempre havia alguém na família que tocasse um violão ou acordeão, ou mesmo só cantasse para animar uma festa ou as reuniões à noite. Falta de alegria não tinhamos.
Havia muito mais conversas, boa educação e respeito, apesar das histórias da Carochinha, que, aliás chegaram até aqui, nesta época de tantas parafernálias eletro-eletrônicas. As brincadeiras infantis ainda são priaticamente as mesmas, pega-pega, casinhas e bonecas, bolas em todas as diversas modalidades, dança de roda,etc.
Sou do tempo em que se fazia serenata. Ou seja: quem tocava algum instrumento juntava um grupo e saía tocando e cantando, à noite (preferencialmente nas de lua cheia) nas casas de vizinhos; coisa que hoje não se consegue, pois atrapalha a "hora da novela" ou o BBB e esse período é um tanto longo...
No entanto, uma coisa que me conforta é eu haver acompanhado essa evolução e ainda estar participando das inovações incessantes, mesmo que um tanto claudicante, atualmente, mas o meu processo teve início na década de 60, num cursinho da IBM do Brasil.
Minha querida, eu teria mais para te contar, mas por hoje vou encerrando esta carta. Outra hora volto a escrever para recordar outros pontos dos muitos que vivi e, também, sobre as minhas (a)venturas do presente.
Um beijo
Vó Ivonita (Tatá)
Florianópolis, fev. 2010