Carta de Demissão do Diabo

Depois de tantos anos em meu honroso cargo de perversor da alma humana, envio meu pedido de demissão. Como poderão constatar os assessores deste plano superior, apesar de meu vasto currículo, com inúmeras incursões pela filosofia, estratégia militar e domínio de todos os idiomas falados no universo e respectivos dialetos, me tornei um profissional obsoleto e minhas qualificações já não atendem as exigências de um mercado de trabalho cada vez mais competitivo. Confesso que tentei me reciclar como profissional nos últimos séculos, mas a última década colocou uma pá de cal na minha carreira, e me pergunto sinceramente se há necessidade de um profissional como eu.

Sou do tempo anterior à escrita. Naquele tempo, os homens se comunicavam com a posteridade através de sinais desenhados na pedra. Acompanhei o processo de desenvolvimento da comunicação com muito interesse, pois eu tinha a certeza que meu trabalho seria facilitado com meios de comunicação mais eficientes. Os homens transmitiam seu conhecimento através da mensagem escrita e com a minha criatividade e talento profissional, logo eu desenvolvi um sistema de contra-informação. O resultado foi brilhante, os homens se matavam, fraudavam e criavam inimizades com muita facilidade e os índices de minha produtividade subiram muito. As ações do inferno subiram e os investidores ficaram extremamente satisfeitos.

No último século nosso trabalho estava no auge. Desenvolvemos publicações das mais diversas e patrocinamos muitos editores para a realização de obras que transmitiam variações cada vez mais criativas do pecado original. Essa visão de futuro se tornou uma tendência na empresa, e conseguimos não apenas desenvolver um sistema eficaz para tornar as pessoas fúteis, sem qualquer conteúdo, como também desenvolvemos um padrão estético universal através de concursos de beleza e a promoção da alma humana para a busca cada vez mais frenética pela aparência em lugar da essência.

Nosso maior projeto, como é do conhecimento deste plano superior e foi sucesso universal de vendas por quase todo o século XX, foi uma banalização do conceito de riqueza. Ricos e pobres sempre existiram. Também sempre existiram aqueles que deixaram de ser pobres para se tornar ricos (somente na Índia não conseguimos implantar um modelo eficaz para esse conceito, mas estávamos trabalhando duro, portanto deixo a missão para meu sucessor, se é que o cargo voltará a ser ocupado). Mas nosso maior sucesso foi a criação do conceito de “emergente”. Esse pequeno ser imbecil que se mata para ser rico apenas para ostentar o que possui em uma vitrine de outros idiotas como ele. O emergente em si não foi uma grande jogada de marketing, mas sim a tendência que ele criou: a substituição do “ser” pelo “ter”. Enfim, após milênios de trajetória, conseguíamos perverter populações em massa, sem se falar da indústria da pornografia, pirataria, a apologia ao crime, que os meios avançados de comunicação em muito nos auxiliaram a conquistar maior espaço nessa grande fatia de mercado. Pelo “ter” se fazia qualquer coisa, desde prostituir o corpo, trair familiares e amigos, enfim, por dinheiro, o ser humano passou a fazer qualquer coisa. Um verdadeiro sucesso profissional, do qual me orgulho de ter projetado nos mínimos detalhes.

Mas então, quando atingimos o auge de nosso crescimento econômico, vieram os novos executivos com seus métodos de concorrência desleal e criaram a contra-informação da contra-informação, que eles chamaram inicialmente de “Internet”, mas que em menos de uma década se tornou um fenômeno de proporções globais que aos poucos foi acabando com a necessidade da minha manutenção no meu honroso cargo.

Antigamente a humanidade precisava de mim. Os homens não se pervertiam facilmente, pois suas almas eram puras quando não tinham informação alguma, e quando tinham informação, eram almas difíceis de corromper, pois seus argumentos eram fundamentados em instituições sólidas como a família, a ética, o direito, a solidariedade, o patriotismo. Confesso que tentei ao longo dos séculos corromper tais valores, e embora tenha obtido êxito em algumas questões, fui superado integralmente pelos novos executivos e suas tecnologias da informação.

Minha insatisfação é com essa nova metodologia empregada. Eu tive que ao longo de tantos milênios que agir sozinho. Tive que coordenar uma pequena legião de demônios, com muitas horas de reunião, treinamento e métodos de gestão. Hoje, porém, estão sendo utilizados pelos novos executivos sistemas integrados de informática, bancos de dados, o que tornou a minha atividade inútil. Através dos referidos sistemas, os homens estão se pervertendo sozinhos, o que tornou minha função completamente inútil.

Assim, agradecido pelos milênios de oportunidade, coloco o meu cargo à disposição.

Atenciosamente,

Angelus Lúcifer

Diretor do Departamento Universal dos Espíritos Desviados

Marco Antonio Vasquez
Enviado por Marco Antonio Vasquez em 14/01/2010
Reeditado em 22/03/2010
Código do texto: T2029552
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