Última carta ao primeiro filho


São Paulo, 02 de janeiro de 1985 - 00:12 h.


Filhinho,

Ontem, a estas horas, mais uma madrugada começava, outro ano terminava e vi teus olhinhos fechando, bem devagarinho, enquanto tu repousavas em meu colo.

Que mais poderia este teu pai fazer, a não ser acolher com firmeza nos braços teu corpo pequenino e envolver com ternura teu súbito ânimo de adormecer? E tu assim o fizeste, indiferente ao espocar dos fogos que pintavam o céu, na festa que todos faziam para um novo ano que chegava.

Ironia das ironias. O mundo comemorava, tu indiferente ias abrigar-te em teus sonhos de criança e eu só pude fazer chorar. Chorar foi o único ato que me restou.

No dia que alvoreceu, horas depois, o mundo ainda estava de ressaca comemorando e esse teu pai continuava bêbado de sono, tentando assimilar a amarga certeza de que tu jamais irás acordar novamente.

Espero que tu estejas sereno, aí onde estás. Ainda não entendi porque Deus te chamou, pois o céu já tem anjos demais.


______________________________

Nota do Autor: Esse texto já tem bem mais de vinte anos. Pensei que jamais o mostraria a ninguém, mas o papel de pão em que foi escrito estava se desfazendo, de tão velho. Lamento, apenas, que o que sinto não se tenha desfeito como o papel. Não sei ao certo qual o sentido de guardar isso tudo!