de quando as horas se abrem

"vou rasgar essa palavra presa. antes que adormeço. antes que me perco o que era. ou nem. antes que eu seja. o que ainda. vou rasgar esse silêncio que ponteia meu peito. essa dor que adormece meus olhos. esse frio que assalta espinhos pele e gestos. vou rasgar-te. aos poucos. sem que sejas, sem que sintas. esperas que eu minta então? esperas que não? apenas. digo-te. o que vai em mim e não pede. o que não tem medida nem cor. tamanho ou definição que caiba. o que eu não sei, mas sinto. não tem nome e se faz em mim como se nasce sonho ou flor. como se pinta o sono de leve e adormeço. adormeço sempre baixinho.não quero que ouças meus passos! na escada, na estrada vazia quando ainda é noite fria. quando o frio fica insuportável aqui dentro e grito. não ouses ouvir meus gritos! não olhes pros meus olhos tristes então. que essa dor vem me banhar feito onda. vem e passa. me transpassa, ultrapassa meus fios, atravessa meus nós. meus pés diante da água. meus olhos distantes, espelhos. balanço, sereno, o mar. o mar, o mar. macio das águas e de água me faço. caminhos versos e nódoas. e que esses rasgos sejam só um pequeno ruído no quarto. e não atrapalhem seu sono. gritarei pequeno que agora não sei mais. o que era caminho. o que era sorte, remendo e verso. as ondas vêm e levam. as certezas todas. ficam esses dias nublados. um grito do que não se sabe é um grito de dor? perdi os nomes, as letras. como se tivesse perdido a visão ou a leitura. nem linhas entrelinhas não há nada que há. agora. esses riscos todo na parede. embaralhadas as formas os ritmos os compassos. como de repente me perdi novamente no mar. ventos. os ventos todos. a distorcer mapas e bússolas. a tecer fios invisíveis sobre as águas. a tingir memórias em meus olhos, dias nos meus dias. como se pudéssemos andar sobre á agua. e o bater de asas fosse apenas soluço. imprecisão. ando a fazer cortes nesse silêncio todo. para que eu possa enfim fechar os olhos e escorrer. me fazer noite com a noite. e quem sabe, assim, durmas tranquilo também."

Da Fulga

"Perdi-me muitas vezes pelo mar, o ouvido cheio de flores recém cortadas, a língua cheia de amor e de agonia.

Muitas vezes perdi-me pelo mar, como me perco no coração de alguns meninos.

Não há noite em que, ao dar um beijo, não sinta o sorriso das pessoas sem rosto, nem há ninguém que, ao tocar um recém-nascido, se esqueça das imóveis caveiras de cavalo.

Porque as rosas buscam na frente uma dura paisagem de osso e as mãos do homem não têm mais sentido senão imitar as raízes sob a terra.

Como me perco no coração de alguns meninos, perdi-me muitas vezes pelo mar.

Ignorante da água vou buscando uma morte de luz que me consuma.''

Federico Garcia Lorca

Dani Santos
Enviado por Dani Santos em 04/12/2009
Código do texto: T1959120
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