Eu minto

Quando essas crises me vêm em mente, eu minto que sei a resposta para as questões que inquietam meu espírito... mas não sei. Nunca soube, na verdade. Por muito tempo menti para mim mesmo, minha vida foi contruída encima de diversas mentiras sinceras que me interessaram em algum momento.

Quando era moleque queria ser menos bobo, menos feio, menos deslocado. Então mentia pra mim dizendo que quando passasse da quinta série eu seria legal, estaria entre os mais velhos, seria melhor no futebol e não passaria mais as aulas de educação física escondido na biblioteca. Quando estava na quinta série, mentia pra mim dizendo que era melhor no futebol, que as espinhas no meu rosto sumiriam com a idade antes de me deformarem para sempre, que um dia aquela garota linda vai olhar pra mim e simplesmente perceber o quanto eu sou a pessoa ideal para ela simplesmente porque a amo com um amor que só é possível aos de coração puro.

Aos 17, mentia pra mim dizendo que meu coração ainda era puro, e que a força da pureza que eu sentia iria transformar o mundo num lugar melhor, mais habitável, que as mazelas da alma eram apenas questões hormonais, e como as espinhas, também iriam sumir um dia. Mentia pra mim dizendo que o amor eterno existia, eu é que ainda não o havia encontrado, que quando fosse adulto eu pararia de me masturbar e teria uma pessoa que me amaria mais que todas as futilidades do mundo. Mentia dizendo que o mundo ia melhorar, que as dores iam passar, que um dias os pêlos iriam parar de nascer.

Aos 19, mentia dizendo que havia traído a namorada porque ela não cumpria seu papel, ou talvez não fôssemos mesmo um para o outro, mentia dizendo que a política não era importante, que o diploma me daria um bom emprego, que as pessoas adultas não eram falsas como os jovens são. Mentia pra mim dizendo que aos 20 seria adulto, e quando adulto, seria uma pessoa melhor e mais responsável.

Aos 20, mentia dizendo que tempo bom era a infância, mentia dizendo que adultos são pessoas más. Não acreditava em Deus, mentindo pra mim dizendo que a fé é coisa de criança. Aos 20, mentia descaradamente dizendo que adorava a escola, que namorada boa foi a primeira, e que amor de verdade não existe e as pessoas não tem mais a pureza das crianças.

Hoje minto pra mim dizendo que a verdade não se põe em meio-termos, que as pessoas precisam ter fé, que é preciso acreditar num novo dia e que a nova geração está perdida. Minto também dizendo que a minha não estava, nós é que estragamos tudo com nossa mania de querer mudar o mundo.

Hoje minto para mim alegando que sou , que quero, que posso, que sinto, que penso, mesmo sabendo que mentir é uma forma egoísta e infantil de moldar a verdade, é uma forma de escapar e enganar a si mesmo. Hoje minto dizendo que não sei de nada, que não fui criança, que não sou eu, que nunca minto. Hoje minto dizendo que meus dias serão para sempre, que as pessoas são de verdade, que as pessoas me amam e eu amo elas, como se o amor que nutrimos uns pelos outros não fosse apenas uma forma mais aceitável de nos sentirmos reais e civilizados.

Hoje minto dizendo que tenho dinheiro, dizendo que a casa, o carro e o celular são minha alma, minha essência e meu corpo. Minto que sou bonito, minto que todas as pessoas são felizes e a beleza é só um ponto de vista. Minto dizendo que o interior é o que importa, mesmo cuidando eu mesmo apenas da fachada. Minto dizendo que todos são iguais, que diferenças humanas não existem, que vivemos num país democrático e que todos desfrutam da mesma oportunidade, mesmo que por nenhum segundo eu me disponha a abrir mão do que é meu. Minto dizendo que sou comunista, que sou capitalista, que sou socialista, que sou branco, que sou negro, que sou brasileiro, que tenho sangue de verdade correndo nas veias. Minto dizendo que tudo isso me faz feliz e que não preciso me preocupar em buscar coisas espirituais porque o mundo material me basta.

Hoje, minto dizendo que não sei mais mentir, que busco a verdade e nada mais que a verdade, que Deus está sempre do lado de quem vai vencer. Essas mentiras ao longo de uma vida, mesmo que a gente minta dizendo que não vamos mais mentir, vão construindo gradativamente o modelo de farsa que cada um de nós somos. Só para no final mentirmos e dizer que nos criamos sozinhos, que fomos nossos próprios pais, que pátria nenhuma nos pariu, nem puta nenhuma, nem mãe nenhuma, nem porra nenhuma. Mentimos sempre para nós mesmos dizendo que mentir para os outros é errado, mentimos pra gente acreditando em Deus e mentimos pra Deus pedindo para ele acreditar mais uma vez na gente.

Mentimos dizendo que nossos planos são sólidos, que nossas idéias são fundamentadas, que nossos ideais são verdadeiros, que nossas opiniões são sinceras, que nossos poderes são usados para o mal, que nossas fábricas não poluem. Mentimos toda vez que abrimos a boca pra escovar os dentes, toda vez que fazemos sexo num quarto escuro jurando amor eterno por talvez vinte minutos. Mentimos toda vez que dizemos Eu te amo, e mentimos ao negar nossas certezas de criança e dizer que nunca amamos ninguém, mesmo que de mentirinha.

Mentimos ao abrir a boca pra falar de nós mesmos, pois sabemos que no fundo nenhum de nós sabe na verdade quem é, ou de onde veio, ou para onde vai. Muito menos o que estamos fazendo aqui. Todo mundo mente sobre Deus porque ele pode não existir, e se existe, nenhum de nós saberia não mentir à respeito dele. Tampouco dizer certezas confiáveis.

Hoje, triste admito, minto com a convicção de quem sabe que está mentindo, e não mais com a inocência de quem acredita dizer sempre a verdade.

Felipe Lacerda
Enviado por Felipe Lacerda em 13/11/2009
Código do texto: T1921543
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