CARTA AO MANO RUBINHO

Belém, 07 de julho de 1971.

Rubinho, mano velho:-

Saúde! Acabo de receber seu honroso convite de formatura, bem como sua amável cartinha, a qual me apresso em responder.

Primeiramente, apraz-me informar que conosco vai tudo bem. Maria Mari esta ótima, os meninos idem, só eu um pouco magro (perdi 6 kg aqui), mas bem disposto e firme na luta diária na “Britânnica”. Mano, por sinal completo hoje dois exatos meses de vida amazônica.

Bom, vamos falar de você, da sua formatura, ok? Depois eu lhe descrevo como são as coisas por aqui.

Rubinho, senti alegria enorme ao ver seu nome inscrito no convite, ao lado de tantos outros, certamente de jovens esforçados como você. Meu irmão, esta conquista o eleva demais em nossa família e, naturalmente, na sociedade. Mas você é bom e humilde demais para se envaidecer disso, tenho a mais ampla certeza. De qualquer maneira, lembre-se:- é de agora em diante o Dr. Rubens! Tem um título, um anel, um diploma, uma profissão, uma carreira a cumprir! Talvez (note bem, talvez!) para os amigos e para a família não haja necessidade de anunciar o “Dr” na frente do nome; mas para grande parte da nossa sociedade infelizmente há! É um direito seu e que somente a você assiste. A conquista foi sua, o mérito é seu! Não se esqueça disso.

Você, às vezes, terá que se impor, terá que “lembrar” aos outros a sua condição de médico-veterinário, de profissional liberal. Porque a vida se nos apresenta situações em que essa necessidade (pode parecer ostentação, mas não é) é imprescindível. Mas não se esqueça, por outro lado, nunca deixe de ser o Rubens, o Rubinho como sempre o conhecemos. Continue sincero, simples e humilde, honesto em seus princípios. E vencerá!

Você faz bem em ir para Goiás, Binho. Nada como uma escapada, mormente no seu caso (inicio de carreira), para dar-nos mais e mais experiência. Eu mesmo, depois de coroa e casado, estou aprendendo bastante por aqui. É incrível como este nosso amado Brasil é cheio de contrastes.

Mas, vá para Goiás! Exerça lá sua profissão, aplique-se, adquira vivência. De lá, então, parta para outros cantos, se for esse o seu destino. Às vezes, seu futuro estará lá mesmo. Ou aí em Belo Horizonte, quem sabe? O certo é que a pessoa deve sempre viajar, jamais deixando as oportunidades passarem. Você só tem a lucrar, nada a perder. O acervo de conhecimentos, a experiência, a vivência que lhe darão as viagens, o contato com outra gente, outros hábitos de vida, etc., etc., só lhe trará maior conhecimento de causa, maior segurança, maior tranqüilidade. Você agora deve começar a viver! Durante quase cinco anos estudou e batalhou como um mouro! Agora chegou o momento de colher os frutos desse seu trabalho. Mas colha-os devagar, sem pressa. Eles estão aí mesmo. Irão amadurecendo e se oferecendo aos poucos. A você compete apenas estender a mão e apanhá-los. Com classe. Com aquela categoria que Deus lhe deu, mano velho!

As minhas sinceras homenagens, pois, Rubinho, pelo seu brilhante feito. E as da Maria Mari também. Ela se orgulha muito do cunhado bacana que tem.

Mano, mas o negocio aqui não é mole! Vida difícil, muito difícil. Povo pobre, hábitos e costumes que remontam aos princípios do nosso descobrimento (a gente do Ver-O-Peso, por exemplo), tranqüilidade absoluta:- não se apoquentam por nada deste mundo! Basta dizer, por exemplo, que das 12 às 14, 14,30 horas, toda a cidade dorme. Até bares e restaurantes são fechados. É incrível! Lojas e, de resto, praticamente todo o comércio cerra as suas portas. É a hora da sesta. E os paraenses vão para as suas redes tirar uma soneca ...

Clima quente e úmido, chuvas diárias, cidade arborizada por gigantescas e centenárias mangueiras. Ruas estreitíssimas, calçadas em pedra sabão, prédios antigos, estilo colonial. Volta e meia uma construção moderna, de linhas arrojadas, surge contrastando com o resto das edificações.

A cidade é pequena, a população se divide claramente. De um lado, a classe dos poderosos, com seus carrões, seus bangalôs, etc., riquezas às vezes construídas quando o contrabando era fácil por aqui, 1964, 1965. De outro lado, o Zé povinho miserável, a classe composta pelos descendentes diretos dos indígenas daqui. Pele amorenada, cabelos lisos e negros, olhos mongolóides, rosto anguloso. É o paraense legítimo. Vêm do interior, navegando em suas canoas rústicas ou em suas “gaiolas” (pequenos barcos), trazendo o produto das suas plantações e da indústria extrativa (colheita nas matas):- farinha d’água, peixe, abóbora, banana, laranja, pupunha, uxi, açaí, murici, castanha do Pará, graviola, maracujá, cupuaçu, etc. . A maioria é de frutas nativas e encontradas na mata que, do outro lado do Rio Guamá (banha a cidade), contempla silenciosa a cidade a seus pés. E esses pescadores, essa gente humilde vem aportar na Bahia de Guajará, em meio aos navios cargueiros que aqui chegam e juntando-se à multidão no caís do Ver-O-Peso, vendem suas mercadorias. Trazem ainda bichos do mato (muito procurados), tatus, macacos, patos selvagens, cágados, araras, tucanos, cobras, etc. . E artigos de fabricação indígena:- arcos, flechas, bordunas, artesanato índio, etc. .

Uma curiosidade:- táxis do ultimo tipo. Só “Corcel”, “Volks 1500”, “Opala”, etc. . Raramente você vê um fusca de 2 portas; “DKW” nenhum! Os carros populares, igualmente, são novos e conservados. Até agora só vi 2 Fords 1951.

O custo de vida é elevado:- leite não há. A maioria consome leite em pó e leite de búfala. O leite bovino você, quando encontra nos supermercados (que são poucos), paga caro. Carne de boi, muito rara (o mais é peixe). E por aí afora ... Sinceramente, a vantagem financeira que a firma me deu pela transferência vai ficar toda nas compras pra casa ... E o pior:- você nem sempre encontra o melhor artigo. Em compensação, acha sorvete de tudo quanto é tipo:- açaí, pupunha, graviola, murici, sapoti, mangaba, taperebá, goiaba, acerola, uxi, cupuaçu, etc. . E são deliciosos!

Agora, nas férias, o pessoal dá o fora para os dois balneários mais famosos daqui:- o Mosqueiro (próximo à Ilha do Marajó, que fica a três dias de barco daqui. Qualquer hora estou indo lá para conhecer ...) e Salinópolis, esta última lá no pontão do mapa, no Atlântico Norte. Cheguei a ir lá, quando ainda sem a Maria Mari aqui. Praia belíssima, areia muito branca e água verdinha, verdinha. Simplesmente espetacular!

Come-se muito peixe e muito camarão, estes de preços mais populares. A farinha deles é grossa e azeda:- é a farinha d’água. Não conhecem a farinha de mandioca refinada. O pão é diferente, a manteiga idem. Em suma:- você, querendo, tem que pagar caro por alimento que venha do sul (é como eles falam, “do sul” ...).

Bom, vamos nos esforçando para nos adaptar. Depois o sacrifício há de ser somente por apenas uns dois, três anos no máximo. Daqui devo ir pra Belo Horizonte, Rio, São Paulo ou Curitiba, não sei. Qualquer deles está bom demais. Aqui, em definitivo, é que não dá pra ficar.

Terminando, Rubinho, uma vez mais os meus cumprimentos, lembranças à nossa querida mãe, Da. Flavia (meu pedido de bênção), aos manos todos, parabéns ao Zé Afonso que agora é companheiro do Carlos Bolota, na “Mannesman”, e a você um grande abraço do, sempre,

Betinho

P.S = E o “Buck Jones”? Já casou? Lembranças a ele e à Manesa. Aécio e Silvinho? Tem noticias deles. Mandei uma carta pro Silvinho.

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RobertoRego
Enviado por RobertoRego em 26/10/2009
Reeditado em 26/10/2009
Código do texto: T1887142
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