Carta

Quando escrevemos textos para um livro, temos plena liberdade de expressão, pois, diríamos que o leitor entra na casa do autor; sendo assim, se a leitura não lhe for conveniente, pode fechar o livro ou passar a outro capítulo. Não é o caso do Recanto das Letras. Neste caso, os textos dos recantistas invadem a casa alheia, passam a ter um horizonte mais amplo; logo, mais cuidado com o que se disser. Imaginem se as “Cartas de um Sedutor” da notável escritora Hilda Hilst fossem publicadas no Recanto! Teriam de ser deslocadas para a secção de pornografia e, mesmo assim, não poderiam ser publicadas, pois, ultrapassariam as normas do “Erotismo moderado” imposto pelo Recanto. Pelas normas, imagino, que o erotismo deveria ser tão moderado, que se limitaria à descrição dos circunlóquios dos beijos de um casal unidos pelo civil e religioso. Enquanto escrevia, lembrava-me de Raul de Leoni que reclamava da amendoeira que plantara e que teria dado frutos no pomar alheio; lembram do soneto Ingratidão? Voltando ao assunto, confesso que ao colocar um texto no Recanto exerço uma auto-censura, que muitas vezes mutila um texto tirando-lhe a graça ou mesmo seu fundamento básico, transformando-o numa sensaboria. Portanto, o Recanto adverte sobre os textos, pede que denunciemos “conteúdo abusivo”, mas permite que se altere o texto ou mesmo que o excluamos, o que é uma boa providência. No meu caso, não preciso das advertências, pois, meus textos são familiares, não é sem razão, que tenho um capítulo do Livro das Horas Passadas a Limpo, com o título de Álbum de Família. Mas, um comentário que não poso deixar de fazer é de ter excluído dois textos do Recanto e me preparo para retirar um terceiro. Algumas vezes, se altero um texto que já estava pronto em minha cabeça, quando o releio me desgosta e aborrece mesmo, se for o caso, receber um comentário agradável. O que importa é que eu não me sinto bem ao ler o texto, como se não o tivesse escrito. Provavelmente, Fernando Pessoa tinha os heterônimos, porque lhe permitiam escrever com estilos diferentes, até com concepções e regras morais diferentes. Concordaria com Ricardo Reis, que escreveu ser a disciplina do aristocrata a inteligência, a disciplina do burguês a religião e a disciplina do povo a cadeia e o respeito social? Certamente não!

Costumo ler os textos dos colegas do Recanto; nem sempre os comento, mas reconheço grandes méritos em muitos deles; quanto aos meus, fico satisfeito de os terem lido, sendo irrelevante se comentam ou não, se a crítica é boa ou não, se o entenderam ou não. Nada disso influi, quando retiro texto, fazendo-o apenas quando eles me desagradam, querendo repensá-los, podendo retorná-los ou não. Jamais retirarei um texto por uma crítica honesta e franca, pois, me incomoda muito mais a crítica favorável a um texto que acho ruim. Em relação aos meus textos, procedo da mesma forma que faço com meus quadros e esculturas – sei o que é bom e o que não presta; mas nunca deixo de assiná-los, pois, tudo é um momento da vida. Meus textos são ficções ou versões, mesmo quando são escritos na primeira pessoa. Podem os oráculos da mente como Freud, Jung, Melanie, Fromn, Magno e tantos outros enquadrar os textos porque os resultados seriam nulos. Quando apresento uma narrativa, meu relato é impessoal, significando dizer que uso apenas um estilo de narrar, mas sem intrometer-me no íntimo da questão. Encerro lembrando uma das regras de vida de Pessoa: “Faz o menos possível de confidências. O melhor é não fazeres nenhuma, mas se fizeres algumas, fá-las falsas ou indistintas” - e dizer-lhes que fico muito feliz de escrever para o Recanto.Abraços.