CARTA PARA ALGUM POETA PERDIDO EM PENSAMENTOS SOBRE SEU CAVALO

® Lílian Maial

I.

Sei que te devo uma carta, um verso, uma palavra.

Sei que estou te devendo.

Sei que estou.

Sei.

No fundo, tenho um certo temor do que escrever.

Hoje as palavras me assustam.

Não passo pela boca e pela pena o que me vai

por dentro.

Tu sabes o que me vai por dentro.

Tu sabes o que me vai por dentro?

II.

Corro o risco de não alcançar o objetivo.

Há algo de atávico nessa mania de buscar objetivos.

Não há objetivos hoje. Há apenas.

Queria te dizer que há algo de mar em nós.

Algo. Alga. Mar: infinito e curvo,

profundo e inconstante,

enchente e vazante.

Estou vazante, inconstante e profunda.

Há uma janela para um mundo que não me deixei penetrar,

tangenciei, curiosa e indolente.

E a janela se abriu, como um portal,

de interrogação em forma de poesia,

contestação em verso branco,

folha virgem, ansiando por um poema profano.

Do meu mar vi um outro tempo,

vastidão de dúvidas, senões, sentidos e música.

Pressinto escuridão e luz.

Duas portas.

Muitas portas e duas pernas.

Duas pernas e uma mente octópode.

Do outro lado, a fragilidade da poesia,

a paixão fugaz de um verso de areia.

Grão de sonho.

Sílica e lágrima.

É o mar: sílica e lágrima.

Dissolvo-me em sílica e lágrima e verso e saudade.

III.

Canta sempre, que a música me embala e me enleva!

Mas deixa teus dedos tocarem como lhes vierem os sentidos.

Sei que virão bem, virão carinhosos, delicados, atrevidos,

violentos, despudorados, quem sabe castos?

Mas que venham inteiros.

Eu sei essa coisa de vísceras, entranhas, sangue, nervos, carne.

Tenho caninos nos versos e na mente.

Loba, vampira e profana. Poeta.

Eu te mato e te faço o parto em cada verso.

Dou-te vida e agonia.

E tu anseias pela dor e pelo gozo.

Tu me fazes poesia.

E me sinto mais nua.

E gosto de me despir para teus olhos.

Um dia te surpreendo pudica,

noutro absolutamente devassa.

Mas sei que tu me sabes apenas poesia.

IV.

Preciso do teu grito, berro, ódio.

Preciso da adrenalina e do ópio,

da paz da lembrança e da agonia da espera.

Devo-te a adrenalina, o ópio, o beijo, o verso,

a estaca no peito, o nó na garganta,

a leveza da meninice, o peso da idade,

o gozo da fêmea,

o colo da mãe.

Não! Não devo nada, eu sugo!

Buraco negro,

que suga e devolve em poesia!

Não sei o que tu és,

mas me pego ouvindo música

e indo a ti em notas suaves e fragrâncias doces,

ao tempo em que me vejo em transe,

em sintonia cósmica com a perplexidade de nós.

Te quero por perto e à distância,

que matéria é ânsia e perda.

Não quero me acostumar a ti,

mas preciso te ler sempre por perto,

te sentir me observando,

captar teus medos e teus lapsos,

tuas meninices absolutamente infantis

e tuas verdades senis.

Caso pensado.

Toma lá, dá cá.

V.

Ousei me apagar do tempo,

e tu te aderiste, me foste receptor.

Hoje não tenho referência dimensional.

Tenho versos, reversos, inversos, anversos.

Tenho esses amontoados de palavras,

onde sou mais eu que eu mesma.

Tenho e dou e recebo mais.

Só sei que adoro dizer teu nome.

VI.

É isso o que somos um para o outro:

impossíveis, imprevisíveis, arrebatadores,

surpreendentes, instigantes, misteriosos,

irritantes, descartáveis e funda-mentais.

Nem o (a)mar consegue nos conter.

Somos dicotomia elementar.

Coisa básica, coisa quântica, exemplo do inexplicável.

Quero a palavra que nos nomeia.

Simples assim: quero.

Sei o que sentes, mas não direi,

a palavra vem adquirindo vontade própria,

evito contato mais íntimo com ela.

Sou pagã, herege, profana,

absolutamente atéia,

mas sei mais de deus que ele de si ou dos homens.

Sei mais de amor, que os amantes shakespeareanos.

Sei mais de ti, que tua mãe, teu pai e teu ego.

E nada sei.

Não te quero confortável.

Quero beber tua agonia, tua dor e tua poesia.

Quero teu suor, tua espera e teu sangue.

VII.

Se atrapalho sonetos friamente construídos,

até o último terceto,

tu os escreves avessos aos sentidos,

mergulhas neles e surfas na paixão que eles instigam.

Sorves a dor que eles descrevem,

gargarejas com as lágrimas que deles rolam,

sorris ao enxugares os olhos de mar.

E dás de comer aos tubarões...

VIII.

Eu conheço a criança e o velho,

o medíocre e o brilhante,

o homem e mulher que tu me és,

e não sei dizer qual gosto mais.

Mostro o tornozelo da dama da noite,

da senhora dos versos,

da deusa dos ventos,

da dona da saudade.

Abro-me e me fecho,

mostro e me escondo,

ouso e me retraio.

E te traio.

Mas grito teu nome,

que nem me lembro de cor.

IX.

Há o débito, confesso.

Porém não sei nem se pretendo pagar.

Quem sabe não prefira

esperar que me seja arrancado à força e com suavidade...

O teto que protege, a parede profanada, o chão que piso,

o peito que esfolo e que escrevo versos de distância e de insolência.

O corpo que acaricio e arranho,

o falo que não falo,

mas que ensino o caminho da paciência e da tortura.

As facas de dois gumes!

Facas de tatuar a loucura.

X.

Mas se tudo falhar, ainda há o mar.

E os olhos.

E a lua.

E os poemas.

Depois nos vestiremos de gente,

consumiremos abraços, carinhos

e coisinhas infantis.

Brincaremos com as palavras,

com a pele, a carne, a unha, o (a)mar.

XI.

Nua...

É assim que seria: nua.

Sei como seria te encontrar.

Coisa de bichos se reconhecendo:

olhar, como a mãe que acabou de parir,

que despe o filho suavemente,

que repara em cada dobra de seu corpo,

percebe o tom da pele, a textura,

o jeito dos olhinhos, o cheiro,

o contorno da boca, os dedinhos, as mãos, os pés...

Dissecaria - em silêncio cruel - cada pedacinho teu.

Saborearia cada movimento respiratório,

sentiria o teu batimento cardíaco.

Repararia se tens sopro no coração.

(coração de poeta tem suspiro).

Eu me sentiria divina.

Me sentiria mãe.

Me sentiria nua.

Me sentiria culpada.

Me sentiria livre.

Me sentiria velha.

Me sentiria menina.

Me sentiria responsável e inconseqüente.

Me sentiria segura e descontrolada.

Teria medo.

O que vomito em ti é tão meu,

que não caberia exibir nem mesmo a ti.

Se teus olhos me encarassem,

não conseguiria, talvez, sustentar meu olhar.

Saberia que me verias despida,

meu pudor me enrubesceria tanto,

que sangraria na tua frente.

Não se trata de mim.

Não dessa que sou, que tem a minha fisionomia.

Não dessa que tem meu corpo.

Mas estranhamente é a que tem meu cheiro,

meu sangue, meu suor e minha poesia.

“Poeta em pele de cordeiro"...

Eu te devoro todos os dias e tu deixas,

Tu gostas,

Tu esperas.

Tu estás espalhado em minha vida... Ou não!

XII.

Meu cheiro é só meu.

É mistura do que me consome e do que te apetece.

Teu cheiro é só teu.

Bom é esse nosso cheiro de coisa esquisita

e, ao mesmo tempo, tão familiar.

Esse ódio que nos batiza.

Essa louca vontade de doer e deixar escapar gemido.

Sim! Somos instintos despudorados,

pré-palavras escancaradas,

clandestinos num comboio.

E tu: meu neanderthal nouveau!

Eu quero esse arrepio!

...

Aquela, que te possui.

® Lílian Maial

Douglas Lara
Enviado por Douglas Lara em 27/09/2009
Código do texto: T1834076