Carta de Henry Miller sobre a liberdade

(publicada no 1° número da revista argentina "Nuevo Planeta", de janeiro de 1970)

INTRODUÇÃO:

No início de março de 1968 decidi preparar uma Antologia da Liberdade. Pus Henry Miller a par desse projeto, em uma carta na qual lhe falava da necessidade de reagir diante das crescentes ameaças contra a liberdade de expressão. Obviamente esta é uma preocupação de todos os tempos. Pareceu-me, contudo, ainda mais premente no início daquele ano, por uma espécie de angústia à qual eu poderia chamar mediúnica, não fosse a palavra um tanto suspeita. Pus-me a reunir os textos, organizando a antologia. Recebi então, como resposta à minha convocação, esta admirável carta. Publico-a aqui como quem prega um cartaz num poste. Espero que Miller não se incomode ao ver-se associado à causa que defendemos.

Louis Pauwels

***28 de Março de 1968

Meu caro Pauwels:

Não me encontro em boas condições para responder ao seu urgente pedido de ajuda. Acabo de sair do hospital, onde fui submetido a uma rápida cirurgia na perna, da qual ainda estou me recuperando.

Ainda que esteja de acordo contigo a respeito da espantosa condição do mundo atualmente, não estou tão certo, quanto você parece estar, acerca da maneira de ajeitar as coisas. Como sabe, jamais pertenci a qualquer grupo político, religioso ou social: limitei-me a escrever e pintar. E ao envelhecer, interrogo-me sobre a força da palavra escrita. Quando era mais jovem, lia todos os revolucionários inflamados, todos os libertários, sábios, santos, e em minha obra me esforcei por fazer surgir no leitor uma chama que lhe concedesse a força necessária para mudar sua forma de viver. Mas quando vejo o que acontece hoje em dia, pergunto-me se minhas palavras surtiram algum efeito. Sem sombra de dúvida, o mundo de agora é muito pior que aquele no qual nasci.

O que estou tentando dizer, meu caro Pauwels, é que, se as palavras dos maiores espíritos, ao longo da civilização, não tiveram qualquer efeito sobre a massa formada pelo público, não será porque existe algo de vicioso nesse método? As grandes verdades sobre a vida foram divulgadas milhões de vezes, mas apenas um punhado de indivíduos se beneficiou delas. Surgiram grandes personalidades, mas seus discípulos não passam de caricaturas suas. Além dos líderes espirituais conhecidos há, e sempre houve, grandes mestres que permaneceram ocultos, sem fazer qualquer esforço no sentido de alcançar as multidões.

Quando penso nessas grandes figuras, conhecidas ou não, não me parece que convenha utilizar a palavra liberdade. Eu diria melhor emancipação, libertação de si, realização, serviço. Ou, para ser mais preciso, liberdade para servir à humanidade. Para isso é necessário libertar-se não só dos laços com a sociedade, mas também da própria ignorância, o que exige obediência e disciplina, entre outras coisas.

Ocorre-me outra idéia. Qual a verdadeira natureza dos problemas que nos assaltam? Talvez possamos resolvê-los mediante um pensamento justo, uma conduta correta, uma frente unida... ou fazem eles parte do espírito da época, do destino humano? Os problemas devem realmente ser solucionados ou estão ali para por-nos à prova? Vemos que os sábios não parecem muito preocupados com isso; para eles, os problemas são ilusórios. O ser verdadeiramente integrado aceita-os como participando da ordenação da vida e, isto feito, imuniza-se. Já não se aterroriza com a morte, a doença, a fome e a pobreza. Acredito que os seres mais livres são aqueles com menor necessidade de proteção.

A pergunta que me faço é: as coisas realmente podem se transformar em um paraíso sobre a Terra, ou em uma utopia, supondo que este seja um estado definível, ou aquilo que chamamos de nossos problemas desapareceriam automaticamente caso tivéssemos uma visão mais ampla da vida? Em síntese: avançamos com passos lentos e penosos sobre o que definimos como progresso ou com saltos inesperados produzidos por ocorrências imprevisíveis, quase milagrosas? Sabemos que as descobertas e as grandes invenções introduziram mudanças profundas na sociedade. Sabemos que a aparição de indivíduos extraordinários, tanto bons quanto maus, trouxeram-nos grandes mudanças. Falta-nos saber as incalculáveis mudanças que a exploração do espaço acarretariam. A possibilidade de entrar em contato com consciências superiores de outros mundos traz em si transformações inimagináveis para a vida neste planeta. Toda nossa concepção do paraíso sobre a Terra poderia se tornar ingênua e pueril se algum dia entrássemos em contato com tais seres.

Em determinado sentido, esse fato já nos foi comprovado pela vida dos grandes mestres espirituais do passado e do presente. Eles dão tão pouca atenção aos males da sociedade quanto aos sonhos alucinados de nossos utopistas. Sua realidade é de uma ordem diferente da nossa. Vivem em uma escala mais elevada com relação a nós. E é sem dúvida por isso que lhes parece tão difícil comunicar-se conosco, ou seja, com a grande massa humana. Como os homens da Idade da Pedra, que vivendo entre nós seriam incapazes de adaptar-se aos nossos costumes, não podemos nos adaptar aos ensinamentos dos visionários surgidos em nosso meio.

Não digo que o caminho do sábio seja o que mais nos convenha: seu papel, assim como o nosso, é decerto provisório. Ele já não pode escolher outro tipo de vida, assim como nós, que não podemos deixar de ser assassinos, mentirosos, ladrões, enganadores e tudo mais. Todos juntos, santos e pecadores, compomos a sinfonia humana no atual estágio de sua evolução. No entanto, o problema é que há inúmeras sinfonias. A nossa não é a primeira, e nem será a última. Mas (e este é o ponto crucial) ou somos capazes de orquestrar as notas da próxima sinfonia, ou teremos de nos conformar com tocar nossa parte quando o momento chegar.

Eu ia escrever "quando o momento explodir", pois as explosões fazem parte dessa coisa obscura chamada criação. Se não pudermos dirigir a conduta de nossas próprias vidas, evidentemente não poderemos dirigir todo o conjunto. Apesar de nossos planos e previsões, acontecem coisas que escapam totalmente ao nosso controle. Não tivemos nada a ver com nosso nascimento, e tampouco teremos, ou talvez bem pouco, a ver com nossa morte. O máximo que podemos fazer é aceitar. A forma como cada indivíduo age ou reage está determinada em seu íntimo. Os heróis não merecem mais honrarias do que os covardes merecem a humilhação. O maior pecado de todos, entretanto, é a ignorância.

Mas como tornar sábio aquele que é louco?

Evidentemente fui influenciado pelos libertários, pelos grandes sábios e mestres espirituais de ontem e de hoje. Mas talvez eu tenha tido a sorte de poder me abrir a estas influências. Devo contudo admitir que também influíram sobre minha maneira de pensar os idiotas, os cretinos, os charlatães e os crédulos.

Todos desempenharam seu papel, e não conheço nenhum preceito que nos permita distinguir qual deles é o melhor.

Não sei, meu caro Pauwels, se isto responde às suas perguntas. Provavelmente não. Mas às vezes uma pergunta faz surgir outras. Não estou certo de compartilhar da sua preocupação com o estado atual do mundo. Parece-me que há duas maneiras de lidar com os males que nos assolam. A primeira seria lançar-se a fazer qualquer coisa, inteligentemente ou não. A segunda seria tentar entender a razão das coisas estarem como estão. Sempre achei que antes era preciso descobrir o que não funcionava em nós; e, se possível, o que funcionava. Essa é uma tarefa que pode levar toda uma vida, e a pergunta persiste: agindo assim favorecemos a vida ou a ela renegamos? Penso que com a compreensão viriam o perdão e a aceitação, não só com relação aos outros, mas com relação a nós mesmos.

Há homens que encontraram a liberdade por detrás das grades de uma prisão. Há homens, grandes homens, que optaram por mendigar. Há homens que preferiram morrer a pegar em armas. Há ainda os que decidiram rejeitar o Nirvana e retomar o ciclo da vida até que o último homem tenha encontrado seu caminho para a realização. Para cada um desses homens, o seu bocado; para cada um deles, o seu dever. Desejo que as palavras tenham poder, mas sua potência permanece sendo, para mim, uma grave questão. Escutemo-las todas, pois às vezes até mesmo um louco diz palavras sábias.

Sinceramente seu,

Henry Miller

Tradução: Damnus Vobiscum

Damnus Vobiscum
Enviado por Damnus Vobiscum em 09/09/2009
Reeditado em 10/09/2009
Código do texto: T1801440
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