brasas e travesseiros
[...] mas volto e volto sempre, então me invades outra vez com o
mesmo jogo e embora supondo conhecer as regras, me deixo tomar
inteiro por tuas estranhas liturgias, a compactuar com teus medos que
não decifro, a aceitá-los como um cão faminto aceita um osso
descarnado, essas migalhas que me vais jogando entre as palavras e os
pratos vazios, torno sempre a voltar, talvez penalizado do teu olho que
não se debruça sobre nenhum outro assim como sobre o meu [...] (A beira do mar aberto, Caio F.)
como as coisas que não sei dizer. esse silêncio que não grito. a hora cheia de nada o vento insosso. a valsa lépida. o sorriso que minto. como uma dor de você ainda em mim. a ferida que não sai com a água do banho. e bálsamo nenhum cura. o sangue que não estanca. o retrato virado na parede sem espelhos. as paredes brancas e eu em vão tentei pintar. onde a cor? onde os dias? odeio teu silêncio e ansio teu silêncio como um corpo que se dá a beber e não se dá. “Eu ando tão down” grita o rádio e faz eco e ecos em mim. ando tão down com as carnes rasgando todas e tentando sorrir com novos dentes. e tentando ensaiar passos novos e abraços e pessoas também novas. ando rasgada. a pele velha embrulhada em papel rebuscado. a rigidez do corpo e o esquecer forçado e tenso. como um ranger de dentes perdido no dia que amanhece brusco. e quero todas as navalhas que minha antiga superfície puder suportar. e é pra você também essa vingança alegre. o vinho a taça a faca. o corte na pele. que se faça o grito. a tua dor escorrendo pelo travasseiro que recusou a minha e que já guardou todas as outras dores tuas. que álcool nenhum acalme. e agora esse grito é quem sabe o último. agora que sabe o quanto eu tenho uma vida e uma vida sem você e mesmo que é difícil ter uma vida sem você mas minto e você nem nota. agora que sabe que tenho tido uma vida. talvez haja algum grito de dor. e lágrimas e vinho. tinto e sangue. e se ainda ter uma vida é essa imprecisão e essa necessidade de provar que tenho uma vida é porque não há. e esse rasgo de silêncio e risos são só vazios de silêncio e riso. e odeio esse mar deserto em que navego e me perco e me perco e fico à deriva sem nada que me possa trazer à tona. sem ter como nem onde repirar o perfume que era meu e não era. e só por isso era meu. como teu gosto, o teu gostar e olhos. só porque nunca foram meu eu os queria. eu os queria e agora eu grito seu nome e dor e te rasgo em golpes leves e me rasgo também. e mancho tua boca com outros gostos só pra que nunca mais pense em me querer. e quem sabe por não me querer me queiras e daí por ser meu eu possa enfim ser eu.
* Down em mim, Barão Vermelho