Querida mãe
Estou escrevendo para desabafar, afinal um filho precisa desabafar de vez em quando ou os problemas tornam-se maiores do que são e não sabemos como suportá-los sem conselhos tão sábios.
Mãe, porque me deixou órfão antes mesmo de sua morte?
Guarde essa carta junto de si, e sempre que ver esse papel peça para alguém ler para a senhora, e quando não mais puder falar, o deixe guardado em algum lugar próximo, embaixo do travesseiro, na gavetinha do criado mudo ou em qualquer lugar. Porque nunca poderá recorrer à sua memória para lembrar-se da carta, ou mesmo de mim.
Mãe, quem é que vai garantir o meu passado?
A senhora foi a única pessoa que viu e viveu comigo meus anos infantis e minha adolescência pueril. Perdi meu passado em alguns meses, e a senhora perdeu uma vida inteira. Gostava tanto de ouvir a senhora contando que eu vivia caindo quando criança, ou que meu irmão ia dormir tarde tendo todos os afazeres de escola para cumprir. Lembra? Claro que não!
Mãe, quem é que vai me ligar pedindo como estou?
Uma gripezinha de nada era o suficiente para tirá-la do sono e então, não importava a hora, o telefone tocava.
Agora vejo a senhora ali, alheia, presa ao colchão de água para não fazer as feridas, presa às fraldas das necessidades e à mercê dos outros. Totalmente dependente dos familiares tão desconhecidos da senhora.
Sabe do que mais sinto falta?
Do seu cérebro. Quando tudo estava ainda ali ao alcance da língua para falar e dos olhos para brilharem e do seu corpo para me abraçar. Como posso dizer que sinto sua falta se me responde com um “Quem é você?”. Como posso dizer para voltar para mim nem que seja para me despedir e dizer-lhe o quanto sempre a amei e venerei e fiz de tudo para deixá-la feliz e também para pedir perdão se algum dia a magoei, se me olhas com uma indiferença de matar?
Mãe, guarde essa carta, porque contigo foi tudo de mim, inclusive o choro enquanto a escrevi por não poder dizer que te amo enquanto lembravas de mim.