Lembranças
Era manhã, o sol acordava com aquela casa que mal dormira, e nos envolvia a todos com seus raios ainda mornos. Surgia vigoroso como sempre, no lugar de sempre, porém seu carinho em luz não cumpria o desiderato rotineiro, porque não possuía naquele dia o condão mágico de me aquecer. A brisa suave, que se percebia no movimento contínuo das folhas, prenunciava um dia perfeito, tocava o meu abatido rosto, iluminado pelos primeiros raios da manhã quando abri a porta. A noite insone, ou quase, pois tivéramos apenas momentos de descanso, e a infinita tristeza, que ainda não conseguíamos controlar, faziam daquele cenário, quase uma natureza morta. Aos poucos íamo-nos levantando, silenciosos, a cama doía, mal percebíamos que ainda havia vida a ser vivida. Saí à varanda, ignorei o pobre cachorro que buscava em mim o afeto de que não dispunha, olhei em torno de tudo: o quintal da minha infância, as árvores, a areia no canto do muro, os pássaros...Recuperava lembranças perdidas no tempo e no meu cotidiano atribulado, na minha maturidade que poucas conquistas me haviam proporcionado, mas que me impingia a dor suprema da morte. Aquele cenário fora perfeito, já não o era mais.
Passeei pelo quintal, buscando, em cada fração daquele solo quase todo cimentado, restaurar a minha história, meus melhores momentos. Lembrei-me dos seus desenhos, personagens e estórias construídos no chão de terra, onde de cócoras rabiscava e com os pés apagava, tornando em seguida a rabiscar, aperfeiçoando os traços até que a sua obra de arte ficasse perfeita. As belas estatuetas que pacientemente ganhavam forma em suas hábeis mãos...O carteiro em sua bicicleta, pesado de cartas e embrulhos, elogiando entusiasmado aquele barro que tomava pouco a pouco a forma bem modelada de personagens vários...
Ainda atordoado, retornei à cozinha, sentei-me em silêncio à mesa e tomei o café que já fora posto por minha mãe. O dia seria longo demais, mas passaria. Em pouco começaria a minha via crucis, pior, continuaria, pois ela começara na tarde do dia anterior com a notícia do seu falecimento...O sol, eu não mais o perceberia durante aquele dia.