Melhor assim
E aquele tubo digestório cerebrado, por onde andará?
Olho em volta. Procuro em vão por seu aroma doce, forte e único. Não há sinal algum. Eu pedi que houvesse?
Posso estar louco, mas juro ter ouvido um som estranhamente familiar, algo que me satisfaz sem preencher, que me enche de gozos e ascos. É uma sensação qualquer que não remete além de fluidos abstratos, fantasias passadas, imagens sem cor. Angústia. Perco-me nesse infinito de sentidos. Tenho todos intrinsecamente doloridos em mim. Que terei eu feito aos deuses para merecer castigo tão clássico e doloroso? Não foram deuses que assim escolheram. Nem mesmo você sabia onde estava a se enfiar quando brincou com as fotos do tempo de outrora. Eu não escolhi encantar-me tão rapidamente. Relutei, mas tempo não bastava, era a aventura que eu queria. Pouco pensei nos sacrifícios, na negligência ou em refrigerantes de laranja, só me interessavam tuas lentes escuras e misteriosas, teus lábios tão enigmáticos quanto um labirinto de três mil faces, teu gargalhar adormecido e imposto.
Parei. Agi rápido, três vezes antes de pensar. Pus fim à vida que desejei em meio ao shakespeariano buraco de incertezas: ora goiabada, ora queijo. Cansei dessa vida agridoce. Azedou o mel, aliás, sequer produziram-no depois do cotidiano estabelecido. Estava escrito na carta engarrafada do náufrago sem dotes literários: por que haveria de dar certo?
Leve como o vento, surgiste. Levou de mim as lágrimas e vestiu minha’lma de louros. ''Encontrei-me em definitivo?'' – pensei esquecendo responsabilidades e respeito. Um pouco cedo para o paraíso, não acha? Resolvi correr o risco, afinal correntes já não havia, liberto estava das desculpas, dos sábados religiosos e do falso afeto, mas não de mim.
Mal pude digerir a pesada refeição que acabara de rejeitar e já me vi metido a pedir outra menos calórica e mais saudável ao bondoso garçom do andar de cima. Este, percebendo a chance de juntar a fome e a tal vontade de comer, encaminhou-me um presente sete vezes embrulhado, sete vezes enlaçado, sete vezes curioso, sete vezes delicado, sete vezes para mim. Seria tão rapidamente meu aquele embrulho pequenino e sem cuidados? Talvez o maior dos erros tenha sido pensar que em um único instante pudesse ter sido meu. Não foi. Nunca. Mas era tão confortável e prazeroso imaginar-me possuidor de tão bela relíquia, tão preciosa jóia. No meio de tantos, eu era o privilegiado. Era fácil pensar assim.
Dois corpos tocaram-se e o presente desembrulhou-se em futuro próspero. Promessas eternas na primeira semana, beijos intermináveis de minutos e segundos contados precisamente, olhos e ouvidos atentos à repreensão. Havia sentido em toda essa história, nem que fosse uma explicação física para a atração mútua entre corpos ou uma combinação química de reconhecimento orgânico entre os organismos em contato. Era evidente que correr riscos valia a pena, era claro que por ela tudo seria pouco e efêmero, era nítido como 2 e 2 são cinco que mais uma vez o sal de frutas temporal se faria necessário. Quem sabe na segunda vez aprende-se algo com a ingestão descontrolada de alimentos baseada muito mais no rótulo do que no conteúdo do produto. Ainda havia o que expelir da primeira vez. Consegue imaginar o que se acumulou nesse intestino durante todo o tempo em que os lobos uivaram?
Certa vez, pra explicar um pouco esse meu paralelo e filosófico mundo devaneador, pedi que me fizesse uma surpresa, lembra? Pedi que escondesse seus olhos dos meus e perguntasse onde estavam. Você riu-se e riu de mim. Achou sem necessidade uma brincadeira como aquela. Eu sorri e concordei. Em verdade, apenas sorri, mas disfarcei a desaprovação, afinal, te fazer feliz sempre me faria feliz. Eu realmente pensava isso, sabia? Penso, vez ou outra, que todos os clichês que usávamos apenas estragaram o caminho já artificializado que traçamos. Eu esqueci de ser criança e você de ser menina. Pai, irmão, tudo menos ‘aquilo’, entende? É difícil pra mim também, não consigo aceitar a idéia de que nos tocamos feito gente, mas nunca animais, porque quando se fala em animal logo procura-se um fundo selvagem, conotação arcaica para um ser tão incrivelmente evoluído como o humano. Quanta asneira metafísica, meu bem! Que tenho eu feito a não ser imaginar como teriam sido nossos momentos não vividos, nossos causos contados enquanto nos mantínhamos em silêncio, nossas trocas de olhares, os beijos de olhos fechados, o calor de um aquecendo o outro, calidamente, de fora para dentro ou o contrário, não importa. Cansado, imagino cada pequeno verso de uma carta que jamais escreverei. Seu nome está no verso, marcado com cores fortes e uma letra bonita, levemente inclinada para a direita, comprida e caprichada – talvez fosse a única parte lida quando visse o meu nome. O que consigo escrever é pouco e ínfimo perante a grandeza do que sinto, diante do vazio em que se abrigou meu coração com sua partida. Meus versos, sinceros e mal escritos, diriam teu nome um milhão de vezes ao ressoar do cântico dos pássaros, tocaria harpas doces como teus lábios em cada pequeno momento de plenitude em sua companhia. Seria eu mais um mercador à espera da satisfação alheia, mais um menino olhando curioso o aquário cheio de peixes, talvez mais um brinquedo nas mãos de uma criança que pouco sabe dos jogos e menos ainda da vida.
Passaria a eternidade a escrever sobre meu nobre sentimento, se não fora pouco o tempo, o papel e a tinta. Perderia meus dias e anos a dedicar-me por seu olhar, por sua paz e seu sossego. Eu diria um pouco mais do que sinto se pudesse, mas viajo em pensamentos e afogo cada sussurro de confiança em meus desejos esquecidos. Desejo-te como quem sonha amar pela primeira vez, como quem já amou tantas outras e, por que não, como quem vive por amar novamente. Paro um pouco, olho para mim. Tenho vergonha do que sou, mas orgulho-me de como levantei-me. Esqueci o ''eternamente'' para crer no ''intensamente'', não para esquivar-me de culpa, mas porque assim não há promessas e, melhor, não há como quebrá-las. Lembra da última que me fizeste? Sua palavra em jogo. Um jogo que te cansou muito rápido e que, eu sei, nunca mais será jogado de novo.
Vejo teu rosto no porta-retratos trincado, tua falsa alegria em me ver, teu sorriso maravilhosamente distribuído longe de mim. Teus olhos, profundos, vibrantes, tocam e chamam como que se me hipnotizassem ao mais leve cruzar de retinas. Padeço diante de tão amarga e saborosa lembrança. Fatigado de emoções, rendo-me aos pesadelos de sonhar-te minha outra vez. Já não sei em que acreditar. Estou confuso demais para distinguir passado e presente. Caio involuntariamente nas armadilhas que coloquei para defender-me de você, ou melhor, do que restou de você em mim, essa memória desgraçada que não faz outra coisa a não ser cultivar-te como a uma planta insaciável. Seria tão bela em meu jardim... mas cansou-se de ser ornamental, eu entendo. Feri-me com seus espinhos, mas sorria a cada nova cicatriz produzida. Sua seiva escorria em cada pequeno caminho de meu corpo, alimentando e nutrindo meus instintos. Que estranho impulso vital é esse que já não sinto ao levantar-me da cama? Que estranha dor no peito, falta de ar me domina. Mas que cansaço ao acordar pra vida. É chegada a hora, suponho.
Respiro. Ainda dói, mas um pouco menos. Dia a dia esforço-me para esquecer a intimidade remota e o aconchego que já não existe. Corro aos braços de um ser sem nome, mas que atende dentro de mim. Fortaleço-me para suportar o breve, mas assustadoramente necessário, reencontro diário. Às vezes tento sorrir para a ocasião, não para que me veja bem, mas para contornar mais essa ironia do destino a que sou submetido. Rir ou chorar já não faz diferença, é tudo a mesma nenhuma coisa, a mesma ânsia em te ver e te esconder. Tento ficar feliz por você, juro que tento. Perdôo, sem mágoas... é claro que não. Orgulho? Talvez, mas acho que esqueci, por obrigação, o suficiente para não mais brincar de chorar por você.
Sabe, eu ainda te procuro pelos caminhos que passamos juntos, ainda te vejo nos mesmos lugares, te escuto a me chamar, às vezes até sinto seu cheiro – provavelmente alguém com o mesmo perfume... ou não -. É tão seco e vazio esse mundo sem e com você. Existir sem mim parece tão fácil pra você, tão melhor... eu não acho. Só me restam esses olhos cansados pra te admirar, isso ninguém pode tirar de mim. Não te toco, mas te tenho guardada em meus pensamentos, em meu ser, meu intrínseco espírito rememora cada vão instante de paz a teu lado, cada palavra ao pé do ouvido, cada provocação insinuante, cada medo superado, cada amargo sorriso de despedida. Não tenho mais medo de ser sozinho, você me ensinou, sem saber, que desejar faz sofrer, mas para desejar é preciso existir alguém... e existiu.
Parto, dessa vez, de cabeça erguida, rumo à uma vida que desconhecia e que me assombrava. Longe de você, conheci uma paz estranha, atingi um equilíbrio que há muito não conseguia. Hoje, não escuto nem o girar dos brinquedos infantis nem a música que embalava nossa noite. Desconheço o valor das surpresas. Você me surpreendeu demais. Ignoro salas de cinema e almofadas cobertoras. Defendo-me de mensagens e ligações instantâneas, tenho aversão a violões e química orgânica. Passei a detestar mostarda, saches de mel e batata à dois. Eu preciso tanto. Eu não sei esquecer...
Pergunto-me, depois de tantas palavras inúteis: onde andará você, minha pequena estrela burguesa? Basta e sobra o silêncio.
As frases já me cansaram, falta-me força até para escrever. Encerro-me com a certeza de que meu desejo é nobre e minha vida não será em vão. Alimento-me com uma eterna vontade do impossível, do irreal, de que abacaxi tenha gosto de morango, ou vice-versa. Frustro-me, mas já não choro. Sei que meus sonhos não te encantam mais e que meu futuro independe do enlaçar de nossas mãos. Sei que o telefone já não toca e que as cartas chegam em branco. Sei que os finais de semana são mais longos e que ainda usa, sem motivo, os presentes que lhe dei. Sei dos teus caprichos, dos teus medos... sei que me esqueceu. Eu poderia gritar e me derramar em lágrimas, como tantas vezes já fiz, mas aprendi que se cresce sofrendo, mas também se sofre, e muito, amando.
Eu gostaria que, ao menos uma vez, seu orgulho fosse menor do que sua essência e que toda essa marra e esse desprezo ensaiados fossem deixados de lado. Um dia, quem sabe, possamos conversar olhando nos olhos novamente, talvez eu até conte uma piada ou te explique ''por que os répteis não existem''. O nosso presente não segue as mesmas direções, mas aguardo a poeira abaixar pra contornar os desvios e te encarar com dignidade e de cabeça erguida. Hoje, te aplaudo pela coragem e pela habilidade com que atuou cotidianamente, até te admiro pela paciência, mas tenho nojo da sua frieza e da sua engenheira incapacidade de amar. Não no sentido lírico, mas no mais holístico deles.
Ah, eu te amei, e quanto, e tanto, e tanto...
Por hora, resta-me a insignificante tarefa de descobrir o meu caminho, ser feliz sozinho, amar de novo, quem sabe. Estou à procura de um outro alguém.
Uma parte de mim quer distância do passado, a outra já o esqueceu. Luto, sem armas, contra o tempo e as lembranças. Canto, sem voz, uma serenata noturna e solitária às flores de um jardim morto e sem graça. Leio, sem meus óculos, o início de um livro indecifrável, que começa num hebraico estranhíssimo e termina, sem piedade, sobre a minha lápide entristecida. Corro, parado em mim, em torno de um labirinto íntimo, buscando sair de buracos que eu não canso de cavar. Atiro-me de um edifício chamado consciência, sem imaginar o que me espera. Choco-me, não tarde, com um solo de concreto realismo, é a calçada da infâmia, é o terror da realidade clamando energias, é o mais rebaixado degrau do edifício, já sem escadas. Olho pela janela de vidros quebrados, é tarde, e eu já não sei contar estrelas.
Descansa seus olhos no infinito, meu coração vai em paz.
Sinceramente seu, J.C.S.