Marmota

Domingo é dia de muita coisa. Dentre elas, lembrar de vovô. Mas não é um vovô qualquer, é o meu vô Divaldo, com sua infinita impaciência, mas de um amor e carinho tão singulares, que jamais se viu por essas bandas do sertão.

Lembra, irmão, dos seus tempos de magarefe ( ajudante no abate de animais para consumo humano), quando ele dizia que o seu magarefe estava sem futuro, era fraquinho? Eu lembro de muito mais coisas!

Lembro do quanto ele tinha a memória boa. Todo final de tarde de domingo eu tinha o compromisso de ir à sua casa fazer as anotações dos fiados da feira. Imagine, eu precisava somar e tirar a prova dos nove para saber se as contas estavam certas e ele, além de saber os nomes de todos os devedores de cor, ainda sabia o valor total das anotações que eu fazia, sem errar nada, ainda me dizia que eu não sabia fazer conta. Quando eu errava alguma coisa ele acudia: "Marmota, faça as coisas direito." E eu não sabia que gostava tanto daquelas xingas; vó dizia que eram "tarramotes".

Mas eu lembro de mais coisas...

As viagens no caçuá... de um lado eu, do outro a bagagem, que se fosse pouca, ele acrescentava pedra pra o peso ficar igual, isso toda vez que vó viajava para o sertão (lá era sertão todo lugar longe da cidade).

Sabia que ele brincou comigo de quatro pés? Sabia que ele sempre tinha uma moeda guardada pra me dar, nos bolsos das calças penduradas no cabide atrás da porta do quarto? Ele sempre me colocava no colo, mesmo quando cresci. Ainda sinto o calor daqueles abraços...

Essas lembranças doem muito, pois ao lado delas existem apenas elas e ele não mais. Mas eu gosto de cultivá-las, pois são singulares para mim.

Nós sabemos o quanto ele nos amou!

Lembra, vocês eram pequenos, nós íamos à roça no Engano arrancar e bater feijão. Bebíamos água nas palhas de adicurizeiro e comíamos a bóia fria embaixo do umbuzeiro. Isso era mágico! De volta, como eu andava mais rápido, ele jogava pedras no mato pra me assustar. E assustava! Depois ele cuidava de me consolar, mas não antes de rir de minha cara de espanto. Acho que eu era feliz e não sabia!

O amor de vô Divaldo era tão grande que el amou os meus filhos como se fossem dele. Mas o tempo distancia as pessoas e mingua sentimentos, não para extinguí-los, mas para nos preparar para as mudanças da vida.

A falta de saúde o trancou num quarto de espera, onde a viagem era inevitável.

Eu fui lá e tentei resgatá-lo de sua angústia profunda. Perguntei-lhe se lembrava do tempo em que me chamava de marmota, ao que ele respondeu:

-"Se chamava de marmota, é porque queria bem!"

Disse-me isto sem me olhar nos olhos. Foram as únicas e últimas palavras que ouvi antes de sua partida, pois o tempo não me deu tempo de vê-lo ainda vivo.

Restou-nos tudo depois de sua ida. Seu retrato na parede, a ranzinzice de vó Zefa, os ecos de suas gargalhadas, o calor de seus abraços ternos, os beijos quentes... ainda está quente o seu lugar!

Se alguém teve um avô bom, com certeza foi igual ao nosso. Ele foi o nosso pai na hora que ficamos sozinhos antes e a partir dali.

A palavra saudade representa vô Divaldo, mas a palavra amor o personifica e a ele só temos a agradecer por ser nosso avô, nosso pai, nosso colega de escola, nosso amigo de jogo de bola de gude, nosso companheiro de cavalgada de cavalo de pau...

Simplesmente vô Divaldo!