MEU TIDULA

Esse Tidula figura em minha obra Chega. Os demais Tidulas nasceram de há pouco em correspondências entre eu e a apresentadora do meu livro.

MEMÓRIAS DE TIDULA

Em 7 de setembro de 1993.

Sempre amada Rita, não me lembro de tudo, nem mesmo de você. Sua carta diz... O que diz mesmo? Tudo me foge, até mesmo as lembranças. Você diz ser minha filha, prima, mãe, sobrinha ou irmã?
Tudo acontece dentro de uma rosa. Sim, trata-se de uma rosa rechonchuda da extensão de um planeta. Diz Alzira ser o próprio planeta. Não discuto, afinal, os jovens estão com as rédeas que conduzirão nosso país.
Aqui na rosa rechonchuda há seres e espécies. Eu mesma estou nela e posso sentir seu odor, ora bom, ora ruim, devido ao toque do homem.
Psiu!...psiu! a pequena Celeste acordou. Jop, seu fiel cãozinho, aquece-lhe a garganta infeccionada.
Há tanta confusão naquele escritório! Jarbas ligou dizendo que o sistema está desativado. Estamos vivendo a era da mecanização. Estão sendo construídos robôs e máquinas para substituir o trabalho do homem. Será? Não seria utopia? Paremos pra pensar: não, não, o homem é insubstituível. Tudo que se cria e se constrói emana do próprio homem.
Prima Rita, hoje estou descansando. Mas não deixo de observar coronel Ribas. Sempre sisudo naquela cadeira de balanço, aguardando o capataz. É ele, Geraldo. Pobre negro! Quebrou o espelho, dizendo ser ele o refletor do pecado.
Você precisa ver como o Rio de Janeiro continua lindo! Cristo Redentor de inertes braços abertos assiste à guerra fria por que passa a cidade maravilhosa. O que ele poderia fazer sendo apenas uma estátua?
Minha cabeça lateja um pouco, deve ser fruto da poluição. Pensei sair mais vezes às ruas. Mas ninguém respeita o pedestre; o homem deveria ter prioridade, afinal, ele chegou à rosa rechonchuda primeiro que as máquinas.
Rita, minha mana, Sá Abília você não conheceu? Claro que não! Ela morreu há cinqüenta anos. Ontem, Sá Abília disse no coreto da praça em bom-tom: “Este ano de 1844 é um ano de glória, pois Joaquim Manuel de Macedo acaba de publicar o primeiro romance no Brasil; trata-se de um livro intitulado “A Moreninha”. Então, Crisântemo com sua voz abaritonada cantou até o dia amanhecer.
Jop, o cãozinho, que parecia ter mais postura que o homem, fez suas necessidades fisiológicas em plena rua Augusta, capital de São Paulo. As madames passavam sobre as fezes sem a mínima preocupação. Seus únicos objetivos eram galgar o espaço em pé de igualdade ao homem. Pobres ingênuas! De há muito não existem diferenças entre a capacidade, seja física ou intelectual, do homem em relação à mulher. Claro que Liliam levará muitos pacientes ao espaço até adquirir experiência! Sua salvação é o anjo Michel, ou seria o anjo Gabriel? Estou confusa, ou confuso? Tudo é uma incógnita pra mim.
Escute Rita, minha sobrinha, tenho que lhe falar: Sá Hortência contraiu lepra. Este é o mal dos tempos. Continua ela pitando muito e o odor exalado pelo fumo me causa náuseas. Fazer o quê? Aponte-me quem não é corrupto nesta política?! Jorge, então, descansa após ser surrado no tronco. E os jornais continuam dando notoriedade a determinados marginais para influenciar ainda mais a cabecinha do jovem. Tudo isto é que levou Pérsio ao manicômio. Ele se faz de louco para viver. Esta é uma boa sugestão. A escritora concorda com a minha assertiva. E você?
Pergunta-me em sua carta por Tidula. Ora menina, você sabe que ele é um exímio mentiroso? Há poucos dias, estava eu andando pelo cafezal com chapéu enterrado na cabeça - não sei se o chapéu era grande demais, ou se a verdade é que andava a galope - fui abordado pelos peões que me esmolavam uma mentira. Recusei atirando-lhes a frase: “Estou com pressa, vou buscar mortalha pra Sá Joana.” Dito isto, Tidula saiu galopando. Para surpresa da verdade, de chapéu nas mãos, os camponeses rezavam pela falecida, enfileirados, até dar com ela a atirar milho aos porcos. Disseram então: “Sujeitinho mentiroso.” Tidula respondeu convicto: “Quando vocês insistiram para que eu lhes contasse uma mentira, devido à pressa, contei-lhes uma “mentirica de nada”. E daí? A mentira vem dos tempos remotos e Joana, a rainha louca, faz parte da busca da felicidade dos homens. Galopa Tidula, no lombo da verdade! Eu não te disse que a felicidade é uma mentira empacada?
Daqui do escritório posso ouvir Celeste conversando com seu cãozinho Jop.
A pequena, de apenas cinco anos, diz textualmente: “Vou construir nossa doce casinha. Precisamos sair daqui, estamos demais nesta casa. Será linda! As paredes serão de rapadura, o piso de cocada branca, o telhado de barras de chocolate, a chaminé de sorvete de casquinha, a lâmpada será um pirulito, o colchão de maria-mole, as escadas de drops e do chuveiro sairá muito guaraná. Você está me ouvindo Jop?” Claro que sim! Ele é seu cúmplice. Mas o coronel não permitirá esta construção. Não há espaço para esta doce criança. Minha casa mesmo está sendo espremida pelos edifícios!”
Querida amiga Rita, você se lembra de Zélia? Pois é, ela está cada dia mais elegante e milionária. Também! Contraiu o terceiro matrimônio com um industrial ainda mais rico que o falecido Dirceu. Continua Zélia freqüentando os maiores cassinos e com sua sorte ganhando mais e mais. Seu espírito é magnânimo! Sempre que se lembra, dá um dinheirinho ao menor abandonado que observa sua Mercedes. Como diz Marcelo: “O importante é manter-se informado. Saber uma sentença ou uma estrofe apenas. Daí o papo rola solto. É pá daqui é pá de lá; é pá e bola.” Alucinante não? Se ele está certo? Só o tempo lhe dirá.
Rita querida aconteceu uma tragédia em Santos. Imagine você que abandonaram um bebê na escadaria da rica Igreja do Valongo. A criança estava em uma caixa forrada de jornais e tinha como teto as nuvens. O silêncio foi total. Eu mesma fiquei bem quietinha embaixo da cama. Pois é, estamos atravessando a guerra mundial! A crioula Sirigaita se arrebentou no samba da escola. Zé Pedro segurou-a pela cintura e disse-lhe: “Dá um tempo muié!” Mas o sangue quente da safada aqueceu a carne fraca do coitado. Daí não prestou: tudo ficou muito claro, o dinheiro não estava sendo recolhido aos nossos cofres, e sim, aos bolsos dos chamados colarinhos brancos. O importante é que a abelha adoça a rosa rechonchuda e nosso povo esquece. É este o nosso calvário: a ausência.
Rita, minha enteada, acaso você se lembra do ponto de encontro dos jovens acima de setenta anos? É o Recanto do Careca. Imagine você, que a cada vez que vou tomar minha cervejinha naquele bar, recebo notícias de que um dos amigos freqüentadores morreu ou está internado.
Minha casa está cheia de gente. Acho que vai haver festa. Psiu! Escute! Celma diz ao médico: “Ela tem cento e dez anos.” Rita, quantos anos são cento e dez? Sinto na boca um amargo adocicado. É o extremo. O angustiante extremo! Não me rendo. Agarro-me a mim. Helena quer marcar nova consulta. Não vou. Dr. Jonas faz parte da máfia branca. Quer ele tirar moedinhas da minha barriga. Que olho é aquele? Ora, Rita, é Deus!
Rita, minha sobrinha, Wilma está sentada em minha cama com aquele bundão. Não se mexe pra nada. Diz ela a Doroty: “Deixe disto, ruim com ele pior sem ele.” Doroty se omite mais uma vez!
Ritinha, minha neta, eis que surgem as primeiras plantações de café no Brasil. Temos cafezais até nas praças públicas do Rio de Janeiro. E diz a quadrinha caipira, segundo Humberto de Campos:

“Quem tiver filha bonita
Não mande apanhar café,
se for menina vem moça
se for moça vem “muié!”

Ah! querida Rita, “se eu soubesse tudo aquilo que não sei, saberia muito mais daquilo que sei.” São estas as palavras de Dr. Álvaro de Salles Oliveira Jr. Quem é ele? O pai, o irmão, ou o marido, quem sabe?! É ele um misto de calma e fumaça de cachimbo que me faz bem.
Rita, minha adorada mãe, vou sair. Quero ar, muito ar. Ah, sim, diga a quem sair por último que apague a luz, feche a porta, e não se esqueça de regar a rosa rechonchuda que adormece no quarto.


 
Lúcia Borges
Enviado por Lúcia Borges em 12/07/2009
Reeditado em 14/02/2016
Código do texto: T1695573
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