RETORNO
(da minha obra Chega?!.)
Querido Tidula
Há tempos que recebi sua cartinha.
Não lhe respondi antes porque continuo lerda. E por falar em lerda, não sei se você é homem ou mulher. Mas isto não importa. O importante é saber que você existe. Continuo confusa!
Sua carta também está meio confusa. Mas ela é bonita, isto não resta dúvida. Seu senso crítico é apuradíssimo. E isto denota que você tem uma forte personalidade. Parabéns!
Perguntei à minha mãe se sou sua parenta. Ela me disse que sequer o conhece ou a conhece. Também isto pouco importa. O importante é saber que você existe.
Você não conseguiu discernir a respeito da rosa rechonchuda não é? Falei com padre Floriano e ele afirmou que esta rosa brotará nos corações avisados para o início da nova era. Isto é, a era da luz. A rosa rechonchuda está desabrochando com a velocidade do ano-luz para finalmente partir o mundo das trevas. Diz o bom padre, que os maus se destruirão com o mundo partido e os justos serão protegidos pela gigantesca rosa rechonchuda.
Tidula, tenho visto por aqui muita gente como Zélia, Marcelo, Pércio, Doroti e outros que você menciona na carta.
Como Pércio, às vezes me porto. Faço-me de louca para viver. Afinal, ser louca não é tão ruim.
Você se lembra do meu marido? Ele mudou muito. Não é mais aquele homem esbelto e ativo. Hoje, Antônio é pacato e incapaz de ler nos meus olhos a fragilidade de mulher. Mas isto não importa. O importantante é que ele existe.
Tive uma forte, adorável e inútil rival. A televisão. Às vezes penso que seria mais leal disputar meu homem com uma mulher. Daí certamente eu iria à luta chegando até mesmo a vias de fato para resgatá-lo. Infelizmente contra a televisão nada pude fazer. Se eu a quebrasse teria de comprar outra nova.
Houve tempos em que lutei em nome de um passado de cumplicidade. Depois, minhas energias esvairam-se. O ressentimento criou um bloqueio gelado que derreteu qualquer expectativa de um futuro melhor ao lado daquele que me conduziu ao altar. Como diz a nada original Wilma: “ruim com ele pior sem ele”. Se sou omissa? Não, sou prática! E acredite, não fiquei quieta no meu canto. Jamais deixaria a amargura invadir meu corpo para a morte tomar meu fôlego. Não... jamais!
De início me entreguei à tormenta da solidão que velava a derrota do meu casamento. E num secreto e corajoso instante, rebentei o silêncio com os mais fortes desejos. Desejo de recomeçar só.
Sacudi a tristeza olhando para o espelho que de há muito não via. Tinha receio que ele zombasse da minha miserável vida. Vida, que exalava inquietação no ar.
A princípio o espelho refletiu meus olhos arregalados em espanto. Ainda bem. Eu estava viva.
Insegura, fui serenando as amarguras, desmanchando as nuvens escuras da melancolia, que estavam à minha volta.
Consegui divisar o vasto caminho para o desejo de recomeçar. Percebi que meus sonhos ainda não estavam destruídos. Ao contrário, eles estavam me oferecendo arrojada grandeza de viver. Viver em contacto com a natureza. Era ela a promessa de um futuro existente.
Com cautela, dei início à nova vida propondo ao Antônio nossa separação amigável.
Na falta de imaginação para criar solução, e sem se dar conta de que seu indiferentismo estava aniquilando minh’alma, Antônio sugeriu que eu viajasse ou fizesse aquilo que bem entendesse, contanto que ficássemos juntos de forma democrática. Ou quem sabe, comodista.
Cauteloso e delicado solicitou:
— Mulher... eu te amo e quero o melhor para você, mas não me abandone. — continuou. Você deveria se orgulhar deste homem que não tem amigos, não bebe, não fuma, não joga e não tem mulheres.
Respondi, de súbito:
— É justamente este o problema. Que você tivesse ao menos uma.
Sugeri:
— Eu, por exemplo!
Ele sorriu doce e franco dizendo que tudo era temporário. Voltou a olhar para a televisão que exibia um simples comercial.
Sabe Tidula, talvez pelo fato de não termos tido filhos, Antônio tomara uma forma de agir e amar muito lerda e desorganizada.
Não aceitando dividir meu bonito e belo Antônio com a televisão, tomei a decisão estóica de me mudar para o interior.
Alquebrada aos trinta e cinco anos, cheguei a me imaginar realizando o velho sonho de estar em uma casinha na roça. Numa casa sem forro para melhor escutar a chuva, com piso de tijolos, fogão a lenha, privada no quintal, colchão de palhas de milho, tamboretes, panelas de ferro, peneira, cuia para lavar arroz, moedor de café e bem acompanhada com papagaio e cachorro vira-lata. Também alguns franguinhos para meu consumo e um vasto pomar.
Com uma volumosa bagagem passei pela sala. Instintivamente parei frente à telinha que imponente se exibia ao meu marido.
Ela sentia-se vencedora. Não me entreguei.
Olhando-a resolvida, desabafei:
— Você não me venceu.
Apontando o dedo para Antônio, afirmei:
— Se aqui há um perdedor, é ele.
Naquele momento, Antônio recobrara o equilíbrio dizendo aos prantos:
— Querida, eu te amo. Estamos juntos há dez anos, não se vá! Se você se for, irei junto.
Meu coração se inundou de felicidade. E num abraço ainda apaixonado fomos ao diálogo.
Antônio me propôs dispor do aparelho de TV e ficar ao meu lado definitivamente disponível, com a condição de assistirmos juntos por quinze dias todas as programações que melhor lhe aprouvesse.
Carente, portanto repleta de contentamento, firmei o acordo dando graças àquele dia em que meu marido desligou a televisão por meia hora, para me dispensar atenção.
Depois, como uma criança feliz, Antônio passou a me inteirar das programações de sessenta canais que incluía TV a cabo.
Nos primeiros dias, comi compulsivamente para suportar ficar em uma poltrona por dez a doze horas. Depois, continuei comendo mais e mais pelo prazer que fui adquirindo pela televisão.
Quando me dei conta, passaram-se os quinze dias e num piscar de olho quinze meses.
Projetei meus mais ansiosos desejos nas novelas e filmes.
Hoje, após dois anos, Antônio e eu fazemos nossas obrigações domésticas pela manhã, preparando até mesmo petiscos, quitutes e doces para comermos durante as programações. Não temos sequer telefone para não sermos perturbados.
Considero-me a mulher ideal para ele, sendo inclusive a gordinha mais feliz deste mundo. Sim, Tidula, porque nestes dois anos engordei sessenta quilos. Estou atualmente com cento e vinte e cinco quilos de plena aceitação, digo, plena realização.
Tidula espero não tê-lo importunado com meu desabafo.
A propósito, perguntei ao meu pai se sou sua filha, sobrinha ou irmã. Ele afirmou categoricamente que você é Tidula quando me escreve e Rita de Cássia quando recebe sua própria carta. Só não sabe se você é homem ou mulher. Também desmentiu o boato de que você seja mentiroso. Papai me disse que você é apenas um inofensivo contador de lorotas. Mas isto não importa. O importante é que você existe.
Um saudoso abraço da
Rita de Cássia.
(da minha obra Chega?!.)
Querido Tidula
Há tempos que recebi sua cartinha.
Não lhe respondi antes porque continuo lerda. E por falar em lerda, não sei se você é homem ou mulher. Mas isto não importa. O importante é saber que você existe. Continuo confusa!
Sua carta também está meio confusa. Mas ela é bonita, isto não resta dúvida. Seu senso crítico é apuradíssimo. E isto denota que você tem uma forte personalidade. Parabéns!
Perguntei à minha mãe se sou sua parenta. Ela me disse que sequer o conhece ou a conhece. Também isto pouco importa. O importante é saber que você existe.
Você não conseguiu discernir a respeito da rosa rechonchuda não é? Falei com padre Floriano e ele afirmou que esta rosa brotará nos corações avisados para o início da nova era. Isto é, a era da luz. A rosa rechonchuda está desabrochando com a velocidade do ano-luz para finalmente partir o mundo das trevas. Diz o bom padre, que os maus se destruirão com o mundo partido e os justos serão protegidos pela gigantesca rosa rechonchuda.
Tidula, tenho visto por aqui muita gente como Zélia, Marcelo, Pércio, Doroti e outros que você menciona na carta.
Como Pércio, às vezes me porto. Faço-me de louca para viver. Afinal, ser louca não é tão ruim.
Você se lembra do meu marido? Ele mudou muito. Não é mais aquele homem esbelto e ativo. Hoje, Antônio é pacato e incapaz de ler nos meus olhos a fragilidade de mulher. Mas isto não importa. O importantante é que ele existe.
Tive uma forte, adorável e inútil rival. A televisão. Às vezes penso que seria mais leal disputar meu homem com uma mulher. Daí certamente eu iria à luta chegando até mesmo a vias de fato para resgatá-lo. Infelizmente contra a televisão nada pude fazer. Se eu a quebrasse teria de comprar outra nova.
Houve tempos em que lutei em nome de um passado de cumplicidade. Depois, minhas energias esvairam-se. O ressentimento criou um bloqueio gelado que derreteu qualquer expectativa de um futuro melhor ao lado daquele que me conduziu ao altar. Como diz a nada original Wilma: “ruim com ele pior sem ele”. Se sou omissa? Não, sou prática! E acredite, não fiquei quieta no meu canto. Jamais deixaria a amargura invadir meu corpo para a morte tomar meu fôlego. Não... jamais!
De início me entreguei à tormenta da solidão que velava a derrota do meu casamento. E num secreto e corajoso instante, rebentei o silêncio com os mais fortes desejos. Desejo de recomeçar só.
Sacudi a tristeza olhando para o espelho que de há muito não via. Tinha receio que ele zombasse da minha miserável vida. Vida, que exalava inquietação no ar.
A princípio o espelho refletiu meus olhos arregalados em espanto. Ainda bem. Eu estava viva.
Insegura, fui serenando as amarguras, desmanchando as nuvens escuras da melancolia, que estavam à minha volta.
Consegui divisar o vasto caminho para o desejo de recomeçar. Percebi que meus sonhos ainda não estavam destruídos. Ao contrário, eles estavam me oferecendo arrojada grandeza de viver. Viver em contacto com a natureza. Era ela a promessa de um futuro existente.
Com cautela, dei início à nova vida propondo ao Antônio nossa separação amigável.
Na falta de imaginação para criar solução, e sem se dar conta de que seu indiferentismo estava aniquilando minh’alma, Antônio sugeriu que eu viajasse ou fizesse aquilo que bem entendesse, contanto que ficássemos juntos de forma democrática. Ou quem sabe, comodista.
Cauteloso e delicado solicitou:
— Mulher... eu te amo e quero o melhor para você, mas não me abandone. — continuou. Você deveria se orgulhar deste homem que não tem amigos, não bebe, não fuma, não joga e não tem mulheres.
Respondi, de súbito:
— É justamente este o problema. Que você tivesse ao menos uma.
Sugeri:
— Eu, por exemplo!
Ele sorriu doce e franco dizendo que tudo era temporário. Voltou a olhar para a televisão que exibia um simples comercial.
Sabe Tidula, talvez pelo fato de não termos tido filhos, Antônio tomara uma forma de agir e amar muito lerda e desorganizada.
Não aceitando dividir meu bonito e belo Antônio com a televisão, tomei a decisão estóica de me mudar para o interior.
Alquebrada aos trinta e cinco anos, cheguei a me imaginar realizando o velho sonho de estar em uma casinha na roça. Numa casa sem forro para melhor escutar a chuva, com piso de tijolos, fogão a lenha, privada no quintal, colchão de palhas de milho, tamboretes, panelas de ferro, peneira, cuia para lavar arroz, moedor de café e bem acompanhada com papagaio e cachorro vira-lata. Também alguns franguinhos para meu consumo e um vasto pomar.
Com uma volumosa bagagem passei pela sala. Instintivamente parei frente à telinha que imponente se exibia ao meu marido.
Ela sentia-se vencedora. Não me entreguei.
Olhando-a resolvida, desabafei:
— Você não me venceu.
Apontando o dedo para Antônio, afirmei:
— Se aqui há um perdedor, é ele.
Naquele momento, Antônio recobrara o equilíbrio dizendo aos prantos:
— Querida, eu te amo. Estamos juntos há dez anos, não se vá! Se você se for, irei junto.
Meu coração se inundou de felicidade. E num abraço ainda apaixonado fomos ao diálogo.
Antônio me propôs dispor do aparelho de TV e ficar ao meu lado definitivamente disponível, com a condição de assistirmos juntos por quinze dias todas as programações que melhor lhe aprouvesse.
Carente, portanto repleta de contentamento, firmei o acordo dando graças àquele dia em que meu marido desligou a televisão por meia hora, para me dispensar atenção.
Depois, como uma criança feliz, Antônio passou a me inteirar das programações de sessenta canais que incluía TV a cabo.
Nos primeiros dias, comi compulsivamente para suportar ficar em uma poltrona por dez a doze horas. Depois, continuei comendo mais e mais pelo prazer que fui adquirindo pela televisão.
Quando me dei conta, passaram-se os quinze dias e num piscar de olho quinze meses.
Projetei meus mais ansiosos desejos nas novelas e filmes.
Hoje, após dois anos, Antônio e eu fazemos nossas obrigações domésticas pela manhã, preparando até mesmo petiscos, quitutes e doces para comermos durante as programações. Não temos sequer telefone para não sermos perturbados.
Considero-me a mulher ideal para ele, sendo inclusive a gordinha mais feliz deste mundo. Sim, Tidula, porque nestes dois anos engordei sessenta quilos. Estou atualmente com cento e vinte e cinco quilos de plena aceitação, digo, plena realização.
Tidula espero não tê-lo importunado com meu desabafo.
A propósito, perguntei ao meu pai se sou sua filha, sobrinha ou irmã. Ele afirmou categoricamente que você é Tidula quando me escreve e Rita de Cássia quando recebe sua própria carta. Só não sabe se você é homem ou mulher. Também desmentiu o boato de que você seja mentiroso. Papai me disse que você é apenas um inofensivo contador de lorotas. Mas isto não importa. O importante é que você existe.
Um saudoso abraço da
Rita de Cássia.