Uma Carta de Amor
Hoje estou com vontade de escrever uma carta de amor que fale ao coração de alguém.
Mas o que direi? O que escreverei? Ainda não sei.
Meus dedos correm pelo teclado e não param. Escrevendo sem parar, parece até que pensam e raciocinam.
Entendo que de tão acostumados a teclarem, funcionam como o “piloto automático” de um avião.
Mas hoje, exatamente hoje, um dia outonal, em que a lua cheia desponta no céu — entrando num novo ciclo — eu também queria ressurgir do nada que me encontro. Queria ser a Fênix ressurgindo das cinzas que sobraram do meu corpo, incendiado pelo amor que senti. Ele me queimou feito brasa e deixou o meu coração tatuado. A tatuagem tem um nome que pulsa no compasso no coração.
Sigo em delírios pelas noites mal dormidas, que ficam esquecidas na teia dos meus pensamentos.
Queria enviar uma carta de amor para alguém especial que recebesse minhas linhas e respondesse ao mesmo tempo, sentindo a mesma emoção que sinto ao escrevê-la.
Esse alguém existiu, mas não existe mais! Pelo menos, em mim, ficou a saudade dos tempos que estivemos juntos, das juras de amor que trocamos, das noites de amor que não foram muitas, mas foram únicas e inesquecíveis.
Meus alfarrábios fazem com que eu me lembre que esse alguém especial existiu, mas agora não está ao meu alcance.
Esse alguém existiu em minha imaginação, porque, na realidade, ele não era o que pensei, tampouco o que sonhei e nunca o que espere que fosse.
Ele surgiu em minha vida, mas trouxe uma bagagem que nunca saiu de suas mãos. Ainda havia aquele celular que ele fazia questão de atender de madrugada, ao acordar, ao tomar banho...
Nunca abandonava aquela bagagem velha, cheia de ranhuras e totalmente amarelada pelo tempo.
Um dia, lhe dei um beijo de despedida, acenei com as mãos enfraquecidas e escondidas, pois não queria que ela as visse.
Não, eu não queria que ele pudesse ver aquelas mãos que um dia tocaram as dele, o acariciaram e seguraram seu rosto junto ao meu.
Ele partiu como se fosse uma pluma soprada pelo vento que vinha da janela, fazendo com que as cortinhas voassem e dançassem ao som do vento que, de fagueiro, surgia manso e, de repente, começava a soprar descontrolado, até que tocava o meu rosto e fazia com que eu perdesse o ar.
Assim eu perdi você...
Esse alguém, eu criei em mim e para mim. Ele era só meu... Só meu.
Para mim foi como um conto de fadas, em que o meu príncipe, finalmente, veio ao meu encontro e me fez acordar para vida.
Confesso que de tão feliz, eu não queria sair do estado de torpor.
Me senti como uma artista frágil, tal como meus ídolos que já se foram numa imensa nuvem de fumaça que eles criaram. Senti-me insegura, com dupla identidade, fora do meu corpo, mas com o coração nas mãos do meu amado.
Eu olhava para ele, tocava-o com a ânsia de minhas mãos, beijava-o com muita volúpia e sentia o maior amor do mundo.
É... Sentia sim. Era um amor inenarrável, inexplicável, interminável, mas que, intrigantemente, teve um fim.
Momentos felizes que tornaram-se infelizes num piscar de olhos.
Nem a sociedade permitia que eu amasse. Tudo era um absurdo, tudo era desigual e preconceituoso, até mesmo para ele que nunca soube se dar e se entregar a tudo que seu coração pedia. Ele ainda não havia deixado a bagagem. Ela continuava em suas mãos durante todo tempo.
Acho que se embriagava para esquecer o óbvio, ou seja, sua própria insensatez, seu medo e sua própria vida que entregou inteira àquela feia bagagem que trazia nas mãos calejadas pelo tempo e pela tristeza de saber que os anos estavam passando, mas ele não se dava conta disso. Ele não percebeu que a cada minuto que a terra girava, ele perdia um minuto em sua pobre vida. Pobre? ―Por que pobre vida?!
Porque a vida só seria rica se ele deixasse o sangue correr livre por suas veias, fazendo com que o oxigênio chegasse até o cérebro, refrescando sua memória.
Nem todos nós podemos ser privilegiados como o Glauber Rocha. Ele trazia uma idéia na cabeça e uma câmera na mão, mas o meu amor, aquele que existiu, mas depois eu não mais reconheci, trazia várias idéias subjetivas na cabeça e uma bagagem na mão.
A bagagem era ela, sim, aquela que conseguiu prendê-lo e escravizá-lo pelo poder das convenções e pelo subalterno desejo de vê-lo alheio à sua vida e a vida dos outros, mas presente apenas na vida dela... Na pobre vida de um a mulher infeliz; De uma mulher que quer obrigar as pessoas a fazerem os seus desejos com chantagem emocional ou com autoridade exacerbada... De uma mulher dominadora, de gênio ruim, de caráter duvidoso, enfim, de uma mulher egoísta e egocêntrica, que se acha a tal, mas que, na verdade, não passa de uma coitada que se desmerece um pouco a cada dia... É, tal uma gazela aloprada que corre atrás do homem que chama de seu. Mas ele não é nem dele mesmo... Ele é do mundo, assim como ela e assim como eu.
Espera aí, não é bem assim. Esse amor não teve fim e nunca terá. Ele sempre existirá em mim... Sempre existirá!
Esse amor é meu... Eu o criei, eu o inventei! Eu vivi e convivi com ele durante toda minha vida.
— Que chatice é essa de falar num amor que existiu, que não existiu, mas que ainda existe porque eu criei, eu imaginei, eu sonhei, enfim, onde está esse amor? Não sei por onde ele anda, não sei!
Eu queria escrever uma carta de amor como se fazia nos velhos tempos, porque eu sou uma amante à moda antiga. Sou do tipo que gosto e permito que os homens sejam cavalheiros, que me mandem flores, que me elogiem quando estou com a roupa nova e com o batom novo e que me mandem margaridas, as minhas preferidas, para carimbar aquele momento, validando nosso encontro. Gosto de um cavalheiro, porque, sem caretice, sou uma mulher romântica e me considero uma dama.
Adoro quando “ele” cheira o meu pescoço, o cangote que arrepia, sei lá, e diz: Hum, que delicia!
Eu me derreto inteira e aí tenho que correr para não estragar a maquiagem. Mas antes, deixo com ele o meu perfume. Ele lembra do meu perfume e da camisa que ficou para sempre impregnada com meu cheiro.
Acabei de constatar que escrevi algumas frases na primeira pessoa.
Estou boiando na maionese com essa história de carta de amor, para esse alguém que existe em meu coração, mas estacionou em minha ilusão, fazendo doer os meus olhos que tanto choram. Oh, vida minha!
— Por que eu fui amar o que não era meu?
— Por que desejei tanto alguém que não me colocou como mulher, a primeira, a verdadeira?
— Por que eu desfiz de mim e não cuidei do que era meu e não dos outros?
— Por que eu desperdicei minha vida esperando que o dia “D” acontecesse?
Eu esperava que ele chegasse triunfante, galante, ofegante, especialmente pronto para darmos início a uma vida a dois. Esperei que ele entrasse e deixasse lá fora o seu passado, os seus compromissos, as suas desconfianças e inseguranças, o seu medo, os seus antigos casos de amor, os seus desamores, o seu trabalho, os seus “desamigos” (não são os inimigos) borbotões de agouro, interesseiros, o seu celular e, especialmente a sua bagagem, porque era infernal. Sim, a bagagem do meu amor era pesada e, para mim, era insuportável.
― Como eu suportei aquilo, eu não sei... Ah, não sei mesmo!
Agora penso como a “Carolina” do Chico Buarque de Holanda:
“Carolina
Os teus olhos fundos
Guardam tanta dor
A dor de todo esse mundo
Eu já lhe expliquei que não vai dar
Seu pranto não vai nada ajudar
Eu já convidei para dançar
É hora, já sei, de aproveitar
Lá fora, amor, uma rosa nasceu
Todo mundo sambou, uma estrela caiu
Eu bem que mostrei sorrindo
Pela janela, ai que lindo
Mas Carolina não viu
Carolina
Os teus olhos tristes
Guardam tanto amor
O amor que já não existe
Eu bem que avisei vai acabar
De tudo lhe dei para aceitar
Mil versos cantei prá lhe agradar
Agora não sei como explicar
Lá fora, amor, uma rosa morreu
Uma festa acabou, nosso barco partiu
Eu bem que mostrei a ela
O tempo passou na janela
E só Carolina não viu.”
E a minha vida está correndo como a vida de Carolina, que não sei se existiu de verdade, mas, sim, ela existiu... Claro que existiu para o Chico Buarque de Holanda! Ele a descreveu, ele a aconselhou, ele mandou que Carolina vivesse a vida. Pediu até que ela olhasse pela janela a visse tudo que ocorria lá fora. O Chico Buarque de Holanda criou a Carolina, do mesmo jeito que eu criei o meu amor imaginário. Ou não?
O meu amor era imaginário, porque eu sabia que ele existia, mas ele não me reconheceu. Ele ficava ao meu lado, me dava as mãos, convivia o tempo inteiro comigo, mas eu sabia que ele era o meu amor, o que existiu...
Quando chegávamos frente às pessoas, todos achavam que aquele amor era eterno. Pensavam que nunca teria fim. Pensavam que eu havia tirado a sorte grande e ele também. Mas passado o tempo, nos separamos, ele foi para o lugar de sua origem, para os braços de quem nunca havia saído e eu aqui, pobre de mim, como a Carolina do Chico Buarque de Holanda, não vi que lá fora uma rosa nasceu, todo mundo sambou e uma estrela caiu.
Eu não vi a vida acontecendo. Dentro de mim algo estava morrendo, doendo, sofrendo.
Algo em mim estava indo embora para encontrar aquele amor que eu inventei, que existiu, que partiu... Sim, ele partiu e, possivelmente, nunca receberá minha carta de amor.
E aí, dando asas a minha imaginação, deixarei o real pra lá, tratarei de criar outro personagem para me satisfazer os sonhos e, quando eu estiver pulando no céu, de estrela em estrela, saberei que meu amor existiu... Sim, existiu, mas partiu.
Então, resolvi examinar com detalhes o meu mundinho para ver se havia sobrado algo que eu pudesse identificar o meu amor, suas impressões digitais em minha cama, em minha cabeceira, na maçaneta da porta, enfim, no cabo da escova de cabelo que ele usava para pentear minhas madeixas, enfim, tinha que me trancar novamente para fazer o que estava planejando.
Fechei a janela, sentei em minha cama, parei para retirar as teias do meu pensamento e comecei a rever as lindas cenas que meu coração abafou, mas que estavam registradas do lado esquerdo do cérebro. Daquele lado, o esquerdo, havia uma ponte quebrada ao meio e, por esse motivo, não chegava mais nenhuma informação para o coração. E este, que sempre bateu amarfanhado, não sabia se aquele amor existira ou não. Mas eu sei, ele existiu... O coração não sabia porque ele não pensa, ele apenas sente.
Sentiu muito amor, desejou tê-lo junto dele, mas já não havia nenhuma ligação com o cérebro para que ele tivesse a certeza se aquele que o fazia tão bem existira ou fora apenas uma emoção muito forte, sentida por uma mulher carente.
Essa mulher sou eu, que escrevo compulsivamente e, às vezes, mesmo sem querer, crio um amor que só eu vejo e sinto, ninguém mais. Nem mesmo ele sabe que existiu de verdade, porque nunca percebeu que estava em mim.
Meg Klopper