MEMÓRIAS DE TIDULA -1-

Chácara Santa Fé, 2 de Fevereiro de 2003-02-03

Querida Diadorim
não sei se sou seu pai, seu irmão, sua mãe, sua prima ou seu enteado. Mas isso não importa. O importante é que existimos nessa terra do sem fim. Aqui há seres e espécies. Há especialmente a rosa rechonchuda que num suspiro mais profundo acordará nossos raios em trovões. Daí sim, o homem e os animais sairão da arca para completar o ciclo natural da selva.
Não sei também se esta carta chegará às suas mãos. Pércio continua a atear fogo em minhas correspondências. Ele se faz de louco para me aporrinhar. E com isso estou confuso ou, confusa? Isso não importa masculino e feminino é uno, redondo e delicado, é único.
Diadorim filha querida ajuda-me a alcançar o meu ser,
pois minha vista que vive a espiar muito adiante do rio
que banha a cidade dos segredos esquecidos não perdoa o meu antigo e cansado corpo que não alcança além da
figueira que adoça o meu portão. Ainda assim Diadorim,
vejo que dentro do pequeno raio de lucidez que me resta,
busco com veemência a delicada história.
Ela tem corpo, é meiga e frágil como criança. Bem
pensada, ela esta recoberta pela rosa rechonchuda. A rosa
parece sem importância, mas creia, sua beleza pode está
contida também no sem importância. Só sei que sou
TIDULA, sou forte, sou centenário, milionário!
Minhas mãos são fortes e grandes, e a palma da minha
mão, é a palmatória do mundo. Cabe a você querer ou não. Se você não gosta do velho compre o novo. O saber do novo é pago através do seminário, simpósio. Assim disse o seu pai, ele também é forte, líder e sábio. Homem de chapéu. Homem de verdade.
Não se aperreie maninha Diadorim, a lembrança vai
nascer. Ela nasce como num parto, sem gritos, sem demora. E a dor? A dor fica na garganta do peixe que vomitou Jonas. E por conta disso e do temor, a cidade estremeceu em fé. Salvou-se.
Diadorim minha velha mãe, o carteiro suado e sem tempo
não levou o meu recado à Marilú. Entre um fragmento e
outro ela se embriaga no hoje. E o resultado desnuda num
ponto perdido, sem saída. Se ela soubesse tratar o hoje
com delicado cuidado, amanhã seria sem manchas,
indevassável. E a rosa rechonchuda agradeceria piedosa.
Pergunta-me em sua carta por Isaura? " Leia-se "SEMPRE
MÃE". Eu a vi na igreja semana passada. Não sei se o
cabo era marfim, pedra ou cristal, mas a bengala da
vovózinha abria caminho às pernas cansadas que tremulas
que se deitaram no altar. Ali, ela caiu no pó em oração e
os mais pacatos pecados à Deus foram segredados. Seu
coração se aquietou por instantes; a alma se foi lavada.
As pernas doíam em penitencia, em remissão. A fé
desmedida era inabalável. Pronto! Deu-se a redenção nos
gritos graúdos e quentes de louvores que avisavam aos
sem vontade, aos destemidos . E na despedida exclamou:
___Senhor, livra-me do pecado. E que pecado se ela é
santa? Quem sabe o pecado está em se saber que é santa!
Só sei, que alimentada e farta na paz, vovó Isaura
seguiu com a bengala que mapeava o retorno para casa.
Diadorim, amada companheira, mande-me notícias do
nosso buquê de filhos, da sua jornada, do seu perdão
sincero, da sua beleza abençoada, do seu olhar
resolvido, enfim, mande-me notícias do bem e do mal para
que eu possa discernir.
Finalizo esta porque tenho que ir ao portão colher
correspondências da figueira para adoçar o meu dia.
Um saudoso abraço do seu companheiro
Tidula


(Retorno pela Mestra: Jaqueline Britto Sant’ Anna)
Beira do Poço, 28 de fevereiro de 2003
Querido Tidula
Você não imagina com que força eu falo querido para você.
Se suspeitasse, montaria naquele corcel negro e viria por
essas léguas buscar meu abraço.
Ando morosa como uma lagarta, presa em suas listras, por
isso só agora domino a pena para te escrever.
Desculpe-me o papel que deve lhe chegar ainda quente do
pão que embrulhou, mas era isso ou nada.
Fora isso, estou ruminando palavras de Adélia que agora
cisma comigo e fica me enviando alguns enigmas.
Veja você que ontem mesmo ela me atirou na cara que a
poesia a salvará. Senti-me tão culpada que fiquei de boca
cerrada para não lhe fazer mal. Enfim, Adélia sabe o que
faz. Quanto a mim. Vou rolando por estas brenhas de teu
Deus. Ainda nem consegui saber se já posso morrer ou se
terei de ficar definhando nesta sede.
Estou cansada, amado Tidula!
Meus pés sangram, minhas mãos estão nodosas como aquela
cana que saboreamos juntos. Aquela doçura ainda me
impulsiona para frente, para bem dentro do deserto.
Não fosse este poço e os homens que por aqui passam,
minha vida seria um parir sem fim. Ainda ontem esteve
aqui um homem que era em tudo igual a você e aí
finalmente pude ter um pouco de aconchego. Sua barba me
deu sombra e seu colo aliviou minha dor de ausência e
distância da nossa rosa rechonchuda.
Você deve estar rindo de mim agora por tanta tolice, mas
Isaura me afiançou que estou certa nesta atitude de
isolamento e culpa. Que fiz eu, afinal de minha memória?
Acho que a deixei contigo.
Pobre Tidula, ainda tenho seu nome tatuado na palma da
minha mão direita. Ninguém aparta esta nossa sabedoria.
Estive até em Jerusalém para aprimorar este meu degredo,
mas só aqui encontro paz. Só aqui pude apaziguar meu
ventre das histórias que acumulei durante minha passagem
pelo deserto. Vi suas pegadas por lá e também o Tinhoso
que amordaçaste por causa do zelo que tens por mim. Na
ocasião achei graça dele ali esbugalhado ao sol. Criança
acha graça até dos imensos perigos.
Hoje choro todas as noites, enrodilhada em mim mesma para
me aquecer do frio do deserto. Assim adormeço embalada
pela falta de nossa mãe e sonho contigo, montado nas
ancas fortes de seu corcel, a cruzar a Chácara. Daqui
vejo Marilu a lhe acenar com a mão numa despedida sem
sentido.
Agora preciso parar de escrever, pois lembre-se que
partilhamos do mesmo ofício e já vejo chegando mais uma
caravana sedenta de minhas histórias. Quem sabe me
pagarão com pão embrulhado em papel de seda? Se assim não for, lhe escreverei na areia e mandarei o vento levar até
seus ouvidos as palavras que ajuntei em meu peito.
Fique com minha saudade,
Diadorinrosa. (obrigada Jaque, pelo retorno)

Caro Leitor:
Se você gostou de MEMÓRIAS DE  TIDULA;  MEMÓRIAS DE TIDULA -1- me leia em MEMORIAS DE TIDULA  -2-  e MEMÓRIAS DE TIDULA -3-. Se quiser saber quem é Tidula me leia em  RETORNO, saberá então, quem é TIDULA na verdade.
Jaqueline (que retorna com a personagem Diadorinrosa) foi a apresentadora da minha obra Chega?!. Ela escreve sobremaneira.
Obrigada pela visita no meu cantinho.
Carinhosamente,
Lúcia Borges
Enviado por Lúcia Borges em 30/05/2009
Reeditado em 14/02/2016
Código do texto: T1623251
Classificação de conteúdo: seguro
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