MOSTRE O PASSARINHO, CIDADÃO K

Depois de passar dois dias no rio Paraná doando sangue para pernilongo, voltei e li com atraso algumas notícias.

Comentei com você, rapidamente, alguma coisa que li e depois dormi por quase doze horas. Cansado, descansei. Da roda viva da vida me afastei e me comovi somente com uma piapara que fisguei no anzol, com certeza suicidou-se por se sentir solitária naquele rio imenso.

Li que o pessoal de uma empreiteira foi preso e que depois foi solto; que a dona de um grande magazine, de produtos exclusivos e caros, foi presa e solta.

No Brasil basta a gente ficar dois dias sem acompanhar o noticiário para se inteirar, na mesma leitura, do problema e da solução, quando o fato se relaciona com certo público.

Prende e solta são coisas agregadas uma a outra, quando se trata de pessoal mais ou menos bacana. Não precisa muito, um pouco de prestígio é suficiente; nosso judiciário parece se contentar com pouco.

Mas escrevo pra dizer, cidadão K, que nas leituras me inteirei, também, de um grande incêndio ocorrido em Itapecerica da Serra e vi as imagens terríveis da destruição.

A camera da TV deu um voo rasante por tudo, rapidinho, e quase numa chicotada da imagem, mostrou um canário morto pelo fogo.

Amarelo ouro, caido ao solo, inteiro, e ao que parece deve ter morrido pelo calor. Vítima única da tragédia.

O reporte nem fez referência e não soube explorar o fato.

A gente se comove com pouco.

Imagine você, cidadão K, como pode ter ocorrido. O canário preso na gaiola, o fogo imenso, absoluto, o susto, o medo e ele ali sem contar com o socorro e ajuda de ninguém.

Restou, como bom canário, morrer cantando. Cumprindo, até o último instante, o destino da sua vida.

Cantou, pode ter certeza, trinados doces, tal e qual cantava todas as manhãs. Trinados melodiosos, afinados, tranquilos. Cantou e encantou a si, até que, vencido pelo calor, tombou e num derradeiro alento soltou o último pio, para plateia nenhuma, mas talvez o melhor e o mais importante pio da sua vida.

Depois seu corpo repousou nas cinzas e por acaso foi alvo da camera da televisão, que o mostrou rapidinho e não se demorou sobre a sua tragédia.

Nelson Rodrigues gostava de contar que certa vez, quando começou num grande jornal no Rio, na idade de catorze ou quinze anos, foi designado para cobrir um incêndio num suburbio.

Chegou lá e constatou que o incêndio era mixuruco, ocorrido na cozinha de um quitinete, merreca que não mereceria uma linha no jornal onde trabalhava.

Até que viu o canário morto.

Como o de ontem, em Itapecerica.

Resolveu contar então a história do canário, que cantou no incêndio até seu instante final, tal e qual orquestra do Titanic.

Fez sucesso e mereceu elogio.

Muito mais velho, aposentado, revelou que o tal canário nunca existiu.

Você cidadão K, que esta semana deu aulas de jornalismo para as crianças de uma escola e que acompanhou a confecção do jornalzinho escolar, igualzinho aquele que a gente fazia na nossa infância, talvez tenha se esquecido do canário. Do passarinho.

Tem faltado passarinho na nossa imprensa. Mas o passarinho anda por ai e, de vez em quando, dá ar das graças e espalha emoções.

O que pode um desfalque de um bilhão de reais contra um canário que morre cantando num incêndio?

Somos humanos e nos comovemos com histórias pessoais.

Desejo, é sincero e juro do fundo do meu coração, que a tal senhora presa e que luta contra inimigo implacável se restabeleça. Rezo para que reencontre a saúde e que tenha vida longa, plena de felicidade.

Quero o bem dela e de todos.

Lembro que, como ela, milhares de presidiários terminais estão em suas celas, aguardando a morte, longe dos entes queridos e cuidados pelos seus companheiros.

Mas não é uma boa lembrança, nem uma boa comparação.

Esses outros, talvez, tenham feito coisas piores do que sonegar. Muitos sonegaram vidas, destruiram famílias e futuros; e, junto com a pena que cumprem perante a sociedade , martirizam seus males em leitos de morte, sem encontrar perdão ou compaixão por parte daquele que é eles responsáveis.

O mundo é um lugar que pode ser terrível.

Não são todos que podem exibir um canário que morre num incêndio.

Também os doadores irregulares das campanhas políticas. Por que presos se são empresários? Constroem obras boas e necessárias; são empreendedores, criam empregos e possibilitam a muitos constituir família e levar vida digna.

A sanção do Estado deve ser seletiva, pensam muitos, não pode ser igual para todos, uns merecem apodrecer na cadeia, outros merecem responder em liberdade pelas suas culpas, em processos intermináveis. E depois condenados a cumprir prisão domiciliar.

Afinal, não é desta forma que o Lalau está condenado pelos seus pares?

Bastou a ele, em determinado momento, apresentar o seu passarinho ao ser mostrado carregado, supostamente doente, numa maca para a prisão de um dia.

Faltou e falta, Cidadão K, lembrar a jornalistas, aos que aspiram a profissão e ao público leitor que existe o passarinho e que ele deve ser exibido. Para e por todos.

A emoção é parte da nossa humanidade, ficamos condoidos pela desgraça alheia.

Basta lembrar que aquela pessoa tem um passado, uma familia, um pai, uma mãe, irmãos, um filho, um negócio honesto, um sonho e que terá, também, se isto depender de nós, um futuro, feliz e digno.

Mostrar que eles estão sendo devorados por um incêndio desumano, ameaçador, injusto, terrivel, e que ele é um canário que canta e que luta. Assim amolecerão corações, como é certo fazer, corações de pedra e que não choram não tem humanidade.

Queremos amor um do outro; queremos a oportunidade de seguir em frente.

Cidadão K, lindo o teu texto sobre crianças que se interessam pelo jornalismo. Oportuno o teu texto sobre o prende-solta, que não compreendemos, porque vivem e compreendem a linguagem do código penal somente os profissionais da área. Nós, cidadãos comuns, vivemos a roda-viva, o cotidiano e aspiramos justiça descomplicada.

Por estas razões Cidadão K, nunca esqueça em tuas palestras e tuas lições, de citar o passarinho, que anda faltando na nossa imprensa e que só é lembrado em situações especiais e quando há interesse.

Mostre o canário que cante na gaiola, que ilumina a vida com o seu canto e que sempre num fato extremo, está ameaçado de morrer num terrível incêndio.

Um abraço, meu muito obrigado pela oportunidade, e uma boa semana, quem sabe, com a ressurreição do canário que canta no coração de todos nós.

Araçatuba-SP, 29 de março de 2009.

Samuel Sajob