Carta aberta

Caro colega,


          O dia hoje, limpo, o céu azul, batido por um sol de raios dardejantes, me fez lembrar com redobrada intensidade, dessa longínqua Cruzeiro do Sul, engastada em pleno coração da selva amazônica, onde, um dia, no cumprimento do dever, estive ao seu lado juntos lutando pela causa comum.
          Ainda hoje parece-me ver nossa modesta casa de trabalho, a disposição das mesas, a pequena geladeira à querosene, o cofre, tudo enfim...
          Recordo-me, deveras saudoso, daquele panorama que se nos antepunha, quando, à tardinha, deixávamos o Banco e de suas escadas externas víamos, a nossos pés, toda a cidade, nos seus contornos esquisitos e caprichosos, cortada de igarapés, vendo-se aqui e acolá pontes de madeira a ligarem as ruas desalinhadas, enquanto, do outro lado, o rio Juruá, com suas águas escuras, cheio de lendas e mistérios, cobras grandes, jacarés de proporções agigantadas, botos, etc., seguia seu curso normal, soberbo, orgulhoso, parece que consciente do grande papel que desempenha como único meio regular de transporte de que dispõe o município, além de fornecer à sua população as mais variadas e abundantes espécies de peixes, destacando-se dentre eles, por seu excelente sabor, o tambaqui e o tucunaré, sem falarmos nas tartarugas, que são verdadeiras maravilhas.
          Há dias, ao rever aquelas fotografias, tiradas em nossa modesta república, cheguei à conclusão de que o mundo é, realmente pequeno em sua aparente enormidade... Por isso, ali, naquela obra de arte, tradutora de fatos reais, viam-se reunidos filhos de uma mesma e grande Pátria, provindos: você, de Belém do Pará; o advogado e escritor Aristófanes, de Manaus; e o autor destas linhas, de Cuiabá, capital de Mato Grosso.
          Então, me veio à mente todo um passado de lutas e de sacrifícios, cheios de inquietações, desconforto e saudades, longe do lar, de esposa e filhos, tendo como único lenitivo a hospitalidade e a lhaneza, nascidas, cheias de espontaneidade, do coração de um povo simples e amigo, como o de Cruzeiro do Sul.
          Relembro, com imensas saudades, daqueles dias ensolarados, daqueles domingos memoráveis, em que incursionávamos aos mais distantes núcleos agrícolas, para, na qualidade de representantes do Banco do Brasil, expormos aos pequenos, médios e grandes produtores a finalidade e as bases do financiamento autorizado pela Carteira de Crédito Agrícola e Industrial e que, pela primeira vez, iria ser aplicado naquela riquíssima região.
          Após aquele último abraço que trocamos no aeroporto, naquele magnífico e inolvidável primeiro de outubro de 1952, decolamos rumo à Rio Branco, com escala em Tarauacá. Esta cidade já a conhece. Não? É modestíssima e sofre do mesmo mal de suas irmãs: carência de transportes. Suas casas, na maioria, de tábuas, sem pintura e cobertas de palhas, emprestam-lhe um aspecto estacionário ou mesmo de regressão. 
          Quanto à Rio Branco, onde chegamos às dezoito horas, comparo-a a uma linda flor nascida num jardim imenso, abandonado, quase esquecido dos homens!... A cidade acha-se dividida em duas partes, separadas pelo rio Acre, sendo que o transporte de uma para outra parte se faz em pequenos barcos, a qualquer hora do dia e da noite. Nesse particular, permito-me externar minha estranheza ante a inexistência de uma ponte que viesse a ligar as duas partes da cidade; a velha -, comercial, por exelência, e a nova, onde se encontram os prédios públicos, hotéis e grande parte da zona residencial.
          Julguei estranho esse estado de cousas, à vista do quanto se gastou na construção da nova Rio Branco, verdadeira obra de arquitetura moderna, onde se divisa o palácio do governo, bonito, admirável mesmo, ostentando à sua frente uma linda fonte luminosa, de onde a água se despenca em sua liqüidez alvinitente e, às vezes, multicores, emprestando às belezas circunvizinhas um cunho todo especial, cheio de poesia e encantamento!...
          Em frente ao jardim, moderno, calçado, bem cuidado, descortina-se o magnífico Quartel da Força Pública. Do outro lado, onde a rua é asfaltada, vê-se o Hotel Chuí, sobradado, com boa apresentação, ótimos quartos, boa sala de estar e de refeições, enfim, o que de melhor se possa esperar no “interland” brasileiro. 
          No dia seguinte reiniciamos a viagem, passando por Porto Velho, Guajará-Mirim, Forte Príncipe da Beira, Vila Bela, - antiga capital de Mato Grosso – hoje em ruínas, Cáceres e finalmente, Cuiabá, ponto final do meu longo itinerário, que durou dois dias, através do espaço...
          Quanto ao panorama, visto de dois mil metros de altura, pouco, ou quase nada, tenho a descrever-lhe. Dir-lhe-ei, apenas, tratar-se de verdadeira maravilha, ante a enormidade das selvas amazônicas, que nos metem n’alma algo de admiração, respeito e medo!...
          Ao apresentar-me na agência de Cuiabá e sentir-me cercado pelos colegas, que me formulavam perguntas várias sobre a viagem, as cidades que vi, os afamados e perigosos vôos sobre as selvas amazônicas, etc, etc, senti, comovido, aquela satisfação imensa, só experimentada por aqueles que, como eu, tiveram uma missão a cumprir alhures e que, a despeito de todos os contratempos, cumpriram-na satisfatoriamente.
          Eu, que no cumprimento do dever, deixei meu lar, esposa, filhos, tudo, enfim, que me era tão caro para prestar serviços, como adido, no extremo norte do país, levando comigo as piores informações possíveis sobre a vida na região, sei, ao rever minha cidade, minha esposa e filhos, tudo, enfim, que me é caro, o quanto é cruel a despedida, difícil o cumprimento do dever e sublime a desejada volta.


                                                                                        Janeiro de 1953.
Antonio Lycério Pompeo de Barros
Enviado por Antonio Lycério Pompeo de Barros em 11/03/2009
Reeditado em 07/04/2009
Código do texto: T1480865
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